Arte – Rodrigo Sarmento
Por André Antônio
Professor (Unicap/PE), Doutor em Comunicação (UFRJ) e Integrante do coletivo Surto & Deslumbramento (PE)
Convidado pela revista F(r)icções a escrever sobre meu filme A seita (2015), retornei a ele depois de quase cinco anos sem vê-lo. Quando se finaliza um filme e ele começa a circular por festivais, o realizador participa de debates porque isso ajuda a divulgar o filme para mais pessoas, mas também porque, depois de tanto tempo de trabalho, é hora de ver como aquilo reverbera em outros, como e se é possível estabelecer trocas a partir do filme finalizado. É hora de entender quais os frutos que podem ser compartilhados e colhidos ali.
Porém, muito dificilmente o realizador reassiste ao filme nessas exibições. O motivo básico é o cansaço. Qualquer pessoa que tenha passado pelo processo de montagem e finalização de um filme, ao precisar revê-lo incontáveis vezes para tomar decisões as mais sutis, experimenta uma saturação com relação ao material que tem algo de tragicômico, uma vez que aquele material, na verdade, diz respeito a coisas que tocam o realizador a tal ponto que ele teve de fazer um filme sobre aquilo – para onde agora ele não consegue nem mais olhar.
Mas existe também outro motivo: é muito comum o realizador experimentar uma espécie de alienação com relação ao resultado do seu próprio trabalho. Eu já conversei sobre e confirmei com vários amigos realizadores essa estranha sensação de ver o filme finalizado ali, projetado na tela, e não entendermos o que é aquilo que está ali diante de nós. O filme chega “inteiro” para as pessoas na plateia, é uma espécie de experiência única e nova. Mas para o realizador, é um amontoado de coisas que foram coladas juntas, cuja eficácia não dá pra entender, não dá pra medir.
Lembro quando sentei pra ver o filme no Cinema São Luiz, no VIII Janela Internacional de Cinema do Recife, antes de um debate. Nos momentos engraçados do filme, as pessoas riam. Em outros momentos, aplaudiam. Aqui e ali, pessoas levantavam dos assentos para ir embora. Mas, para mim, a sensação era de completo nonsense. Por mais que eu tivesse planejado aqueles momentos de humor, e tivesse previsto que haveria pessoas que não embarcariam na duração longa dos planos, eu não conseguia ver como aquele filme estava funcionando, como ele atingia as pessoas, como ele gerava sentidos. Eu só via um monte de imagens cujo significado eu não conseguia realmente acessar.
Ao revisitar o filme para escrever este texto, constatei que a sensação de estar diante de um ovni continua. Enquanto via, pensava: “que loucura, como a gente fez isso? O que tinham colocado na água de Recife pra todas essas pessoas toparem fazer isso juntas? Que conjunto de ideias doidas reunidas num único lugar”. Um outro entrave de rever um trabalho que você mesmo fez no passado é se deparar com o seu eu da época, no sentido de um eu que tinha menos experiência que hoje, que sabia de menos coisas relacionadas ao processo de fazer um filme, que tinha menos habilidade técnica.
E, apesar de tudo isso, a experiência de mergulhar nessa revisão foi boa. Sim, eu vi ali várias coisas que não funcionaram a partir da falta de habilidade de um elenco completamente feito por (amigos próximos) não-atores e sobretudo da minha ainda maior incapacidade de saber como dirigi-lo. Mas, ao mesmo tempo, fiquei orgulhoso daquele conjunto de imagens de bichas dando pinta com figurinos fabulosos, daquelas cores que dão prazer de assistir e daquele conjunto de registros de paisagens reais do Recife, a cidade que foi a principal motivação para eu ter tido a ideia de fazer esse filme em primeiro lugar.
Sobre fabulações
Para falar sobre A Seita, a F(r)icções me deu os seguintes termos-chave como forma de integrar meu texto ao seu dossiê: “narrativa fabular” e “imaginários políticos”. Eu entendo completamente como o filme pode estar relacionado, na percepção das pessoas, a noções como “fábula” e “fabulações”. “Fábula” remete a algo inventado, a algo que tem mais a ver com o sonho do que com a realidade, a algo que proporciona um escape. Tendo revisto o filme, as características estéticas dele que levam a esse tipo de fruição ainda surgiram fortes pra mim.
O filme é uma ficção científica que se passa num futuro próximo, no ano de 2040. A nossa “caracterização de época” – feita conjuntamente com o diretor de arte Thales Junqueira, os figurinistas Alysson Santos e Paulo Ricardo e o maquiador Lúcio Galvão – estabelece de forma muito material o tom e a atmosfera que prevalece no filme. Esse tom nos leva para uma extravagância visual requintada e ainda assim decadente.
Ao invés de pensar o futuro como um mundo ultra-tecnológico de objetos prateados, máquinas e computadores, Thales construiu um futuro retrô, um futuro que repete o passado (não é sempre assim?), mas de maneira idiossincrática, misturando várias modas e tendências desconexas. Da mesma forma, o figurino – e também o cabelo – do protagonista (Pedro Neves) se baseou no universo do dandismo e no rock da década de 1960.
Ao mesmo tempo, criamos uma visualidade totalmente “colorista”. O filme teve uma paleta de cores relativamente restrita, baseada principalmente no contraste entre tons frios de azul e tons quentes de rosa. Nossa referência principal foi a pintura Rococó – um tipo de estilo frívolo que transmitia a sensação de nostalgia por momentos banais e prazerosos do passado (em contraste, por exemplo, com os dramas graves e dilacerantes do estilo Barroco). Isso guiou as confecções dos departamentos de arte e figurino.
No cinema, o realismo é pensado como uma não-restrição a determinadas cores, como uma pluralidade aleatória de cores. O cinema realista é pensado como uma “janela para o mundo”, como se o espectador estivesse vendo a própria vida real passar diante de seus olhos através de uma janela privilegiada. Estabelecer uma paleta específica para um filme, pelo contrário, “fecha” a janela a um certo fluxo de sensações específicas, que são postas em foco ao invés da suposta aleatoriedade do real.
E por fim, minha concepção estética para a direção do filme se baseou no deboche. Isso significa que, voluntariamente, o filme não se leva a sério. No meio das andanças melancólicas do protagonista, há sempre momentos e diálogos cômicos, que quebram a seriedade. Os zooms do filme foram inspirados na estética dos filmes de Andy Warhol da década de 1960. Ele filmava amigos próximos de maneira despretensiosa em 16mm, com zoons toscos e fazendo a câmera passear pelo ambiente sem realmente se importar muito com quem está falando no momento.
Ao mesmo tempo, nos enquadramentos e na decupagem, não segui o caminho dos ângulos fluidos do cinema clássico. A visualidade de A Seita se dá nos quadros vivos, numa espécie de hibridismo entre cinema e pintura, em imagens frontais, quase “congeladas”, mais centrípetas que centrífugas. Tudo isso traz pra quem assiste uma sensação de artificialidade. Não se está mais vendo uma janela para o mundo, mas uma imagem construída – e portanto necessariamente limitada, frágil, sem autoridade. Assumidamente subjetiva e incapaz de abarcar o “real” por inteiro.
Tudo isso levava o filme para longe do realismo, para longe do caminho habitual que, pelo menos na maior parte do cinema praticado ao redor, era escolhido. Nós do coletivo Surto & Deslumbramento (eu, Chico Lacerda, Fábio Ramalho e Rodrigo Almeida) já vínhamos pesquisando esse caminho diferente nos curtas-metragens. Mas o mais curioso aqui é que, em A Seita, essa fuga do realismo nunca foi, para mim, uma fuga do real.
A Seita foi um projeto que nasceu como curta-metragem, no qual eu queria explorar a atmosfera e a espacialidade de certas regiões degradadas e decadentes do Recife que sempre me fascinaram. Digo “sempre” porque morei perto de boa parte das locações externas escolhidas para o filme, na região do bairro de São José – região próxima ao centro da cidade, que fervilha de comércio durante os dias úteis, mas que vira uma verdadeira distopia deserta à noite, nos fins de semana e feriados.
A marca desses lugares são as paredes descascadas e a diversidade de prédios e fábricas (principalmente das décadas de 1950-60) abandonadas. Quando criança, passeava com minha mãe por essas ruas e eu amava a sensação. Eu ficava fascinado, como se houvesse ali uma aura mágica; um mistério que eu, um dia, ainda iria descobrir.
Foi exatamente essa sensação que eu quis recuperar, o máximo que pude, em A Seita. Esta é uma sensação real. Ela existe. À medida que fui envelhecendo, outros conceitos, outra forma de entender as coisas – mais cerebral, mais racional – foi se impondo ao meu olhar, à minha inteligência. As coisas se desencantaram. Se eu desse muito valor a esse novo tipo de entendimento, eu teria feito um filme a partir dele.
Eu poderia ter feito, por exemplo, um filme denunciando a degradação de parte da cidade, enquanto os bairros de classe média-alta se preservam a partir da lógica do dinheiro privado. Seria um filme considerado realista. Porém, por sorte, eu ainda tinha fé naquelas sensações, naqueles fascínios infantis, e se a arte não fosse o lugar onde eu poderia reencontrá-los, onde seria?
Fazer esse filme foi uma forma particularmente cara de terapia. A Seita foi um processo importante pra mim, mas depois eu tive que procurar outras formas de cura, já que as condições materiais não permitiam que eu ficasse fazendo filmes o tempo inteiro.
Esse processo me fez confirmar, de maneira direta e não apenas teoricamente, que “realismo” é apenas um rótulo que designa não uma conexão mais intensa com o real, mas, simplesmente, as convenções de um estilo específico (de uma forma de continuidade, de uma forma de enquadrar e decupar, de uma forma de ritmo e de uma forma de apresentar personagens e corpos numa tela).
Falando aqui de fabulações, minha contribuição para o debate deste dossiê é que talvez devêssemos afrouxar a rigidez entre o que consideramos realista e o que consideramos fabular. Muitas vezes, é só com as ferramentas da distorção, da deformação, do exagero e do artifício que conseguimos compartilhar algo que sentimos como muito real. Muitas vezes, o real está bem distante da sensatez dos códigos cerebrais e racionais.
E assim sempre me parece algo injusto A Seita apenas ser lembrado pelo lado dos figurinos exagerados e da paleta de cores e não por todas as locações reais que permeiam o filme do começo ao fim. Não fizemos nenhuma intervenção naquelas locações. Não há efeitos especiais. São imagens documentais.
A escola em ruínas que os personagens visitam é o Colégio Marista da Avenida Conde da Boa Vista, onde eu realmente estudei até os 14 anos de idade. Na pesquisa de locação que fizemos para o filme, encabeçada por Luiza Ramos, pensávamos: “a distopia é agora, a ficção científica é o que estamos vivendo”.
Imaginário político
Existiriam conexões entre essa fuga ou recusa do realismo e uma postura política na prática cinematográfica? Eu acredito que sim. Antes de tudo, eu não acho um bom sinal quando uma prática imagética, seja ela qual for, tende a impor a um artista um conjunto de regras sobre o que ele pode fazer ou sobre o que ele deve evitar.
Ao longo do século XX, a “natureza” da prática fotográfica era associada à capacidade de um fotógrafo capturar o “instante decisivo” da vida real cujo fluxo transcorre velozmente. Assim, trabalhos que se baseavam na pose e na construção cenográfica premeditada eram olhados de forma condescendente. Isso mudou com a chegada do estilo pós-moderno no fim da década de 1970, mas eu sinto que, no começo do século XXI, o cinema passava por algo semelhante.
Os filmes tinham que ter algo de um despojamento documental: câmera na mão no fluxo da cena, ancoramento à materialidade presente, narrativas rarefeitas (mas lineares, contínuas, em última análise não muito diferentes do começo-meio-fim do cinema clássico). Essas “regras” levaram quase que a uma espécie de academicismo nos festivais e publicações de cinema. As coisas que fugiam desse esquema eram vistas como frivolidades bizarras.
Não sei até que ponto isso ainda se sustenta hoje. A paisagem muda rapidamente. Torço para que haja espaço para práticas imagéticas mais lúdicas, mais anárquicas, mais inconsequentes. Nas quais você possa se experimentar como outro, como diferente do que você é agora. Sem pensar muito no grande projeto edificante que aquelas imagens vão construir, mas tendo como foco sobretudo a sensação específica que você quer experimentar e que você quer compartilhar com outras pessoas.
Você pode ser um dândi vindo de uma colônia espacial para passear – usando rosa – pelas ruínas da sua cidade, para se reencantar com aqueles espaços que, na vida adulta, você aprendeu a ignorar, a não ver mais. É como quando você é criança, pega uma foto preto-e-branca de um jornal e começa a colorir com cores que soariam irreais, estranhas.
É apenas uma hipótese, mas eu sinto que há algo de profundamente político nesse gesto. É que, através dele, através daquelas cores dissonantes, através de certos “exageros” ou “deformações”, nós conseguimos tornar visíveis coisas, forças, sensações e afetos que antes estavam invisíveis. Coisas que a humildade do clique no “instante decisivo” e do despojamento documental podem não conseguir registrar. E enquanto essas coisas permanecerem invisíveis, vamos continuar reféns de uma visualidade hegemônica que se passa pelo próprio real, quando, na verdade, ela é apenas uma versão do real como todas as outras, nem mais, nem menos.
Quando A Seita foi lançado em 2015, eu senti que houve uma espécie de choque entre o público e aquilo que ele encontrou na tela. Ele encontrou tableauxs cor-de-rosas, um visual kitsch, um filme que parecia não se levar 100% a sério – o oposto da sensibilidade grave e documental que predominava no cinema independente como um todo. Ele também encontrou não um herói no qual pudesse se espelhar, mas um protagonista de atitudes questionáveis, que parecia não ter nada a contribuir para uma lição edificante a ser aprendida ao fim do filme.
Eu sinto que ir ao cinema e ter esse choque é algo mais político do que chegar lá e encontrar exatamente aquilo que se esperava. Um filme confortável que vai apenas reafirmar e confirmar aquilo em que você já acreditava. Meus votos são para que esse tipo de choque possa acontecer com mais frequência; que ele seja algo menos raro que um dândi.
Eu intuo que, se A Seita é uma obra com alguma dimensão política, é por causa desses fatores muito mais do que por causa da trama política mínima que permeia o filme para além dos longos planos mostrando a frivolidade do protagonista: no Recife de 2040, uma seita secreta desenvolve um antídoto para a vacina obrigatória que, no futuro, impede as pessoas de conseguirem sonhar. Eventualmente, a polícia das Colônias Espaciais dissolve o grupo, assassinando seu líder. Porém, o protagonista consegue salvar alguns frascos da substância, a partir dos quais ele registra sonhos espaçados, aqueles que ainda podem surgir.