Críticas | Mauro em Caiena

Críticas | Mauro em Caiena

O maior perigo é a partida e a chegada

Por Mariana Damião (Natal | RN)

É na percepção e sensação dos familiares mais próximos sobre as partidas e chegadas de Mauro, indo e vindo da capital da Guiana Francesa, que o curta-metragem de Leonardo Mouramateus tece uma trama agridoce, entrelaçada pela nostalgia, lembrança, melancolia e esperança.

Quem nunca teve entre seus familiares alguém que, em sua juventude, saiu de casa e partiu para morar em outra cidade, estado ou país, seja provisoriamente ou sem data para voltar? Ou, até mesmo, quem é que já não foi esta pessoa que, seja por uma oferta melhor de emprego, um intercâmbio ou indo em busca de uma vida melhor, deixou a terra natal e se desprendeu de tudo e de todos para desenvolver a capacidade de se transformar em outra coisa?

Apesar de o nome do filme ser Mauro em Caiena, não o vemos e nem vemos sequer a cidade em instante algum dos 18 minutos, mas o impacto deste ato dele na vida dos sobrinhos, dos amigos, da mãe e até mesmo do bairro de classe média baixa em que ele morava, em Fortaleza (CE).

Todo filmado em preto e branco, o filme inicia com cenas de canhões atacando o Godzilla, o que gera acidentes de carro por onde o monstro passa, enquanto alguns homens observam tudo de binóculo da janela de um apartamento, para logo depois mostrar em plano detalhe a boca aberta de um menino imitando um cachorro subindo em uma árvore.

O que parece um corte de cena nonsense e sem propósito logo se apresenta com total sentido através da narração de um dos sobrinhos de Mauro, Leonardo, que guia toda a narrativa. Este menino é Marquinho, sobrinho de Mauro.

Se o preto e branco da obra denotam a visão da criança do mundo, de um tempo pueril que não volta mais, os canhões que atacam o Godzilla, isto é, a nossa criança interior e animal, vêm representar o ataque de pessoas ao nosso redor, ao olhar de homens espionando, tendo percepções alheias sobre o que nos aflige – neste caso, o que aflige Mauro, através de intempéries vividas que, como em um acidente de carro, podem nos deixar com leves escoriações ou findar a nossa existência.

O curta nos mostra como Mauro marcou as pessoas com quem esteve e os espaços onde pisou. Lembranças de infância, de Mauro brincando com os amigos com um pneu e com um boneco de dinossauro espelham a nostalgia do que se foi e marca novamente o Godzilla como símbolo da força da natureza que nos move, mais vívida em nós durante a infância.

Na antiga casa de Mauro está Albaniza, uma mãe solitária, com uma vida rotineira, cozinhando peixe na companhia de um gato. Sentada no quintal ao som de Raça Negra, a trilha musical dos abalos emocionais dos brasileiros, a saudade do filho Mauro vem à tona, mas este sentimento já está tão arraigado nela que, mesmo sentindo falta, prefere que ele não volte mais, como bem é cantado na letra da música de fundo: “Me fez sofrer demais, mas te olhando fico louco. Por isso, Deus me livre de encarar você de novo”.

Além de ouvir Raça Negra para perpetuar a presença da lembrança do filho, esta senhora abatida pela vida ainda encontra acalanto ao ver Marquinho e Júnior, sobrinhos de Mauro, brincando no quarto que outrora foi espaço onde o filho tanto brincou, o que, de certa forma, mantém a energia de vida do morador de Caiena naquela residência.

Uma outra passagem marcante é quando Leonardo, relutantemente, vai filmar a derrubada da árvore que Mauro marcou com um X quando criança, afirmando o papel do vídeo, deste curta e, ambicionando uma perspectiva ainda mais macro, do cinema, como forma de registro e como preservação da memória de uma pessoa, de um espaço e de um acontecimento.

Filmada em um enquadramento que privilegia a visão da copa da árvore, a derrubada se dá lentamente aos nossos olhos, e não cortada de uma vez, como nos desenhos, pois as lembranças de alguém não são cortadas dos espaços e/ou da mente em um único golpe, mas aos poucos. E de nada adianta tentar marcar a propriedade de um espaço com um X ou a de uma vida com atos pontuais, pois não somos donos de nada, seja de uma árvore ou uma lembrança.

Ao longo da obra, percebe-se que a visão de Leonardo sobre o tio muda ao longo da vida: quando criança, o vê como herói, cheio de orgulho por ter um tio que mora em outro país. Logo depois, o orgulho se torna desdém, pois o tio poderia ter ido morar na França de verdade ou nos Estados Unidos. No entanto, quando se torna um jovem adulto, com idade semelhante a que Mauro tinha quando partiu, começa a enxergar o pai através da análise pura dos fatos, demonstrada pela fala de que, agora, a Guiana Francesa está presente nos livros e que ele fica feliz com isso.

Mesmo com o entendimento mais racional das motivações de Mauro, Leonardo começa a sentir uma identificação com o tio ao, durante uma festa, se sentir magnetizado pela visão de uma mulher numa festa segurando uma garrafa de cerveja, o mesmo grau de atração que Mauro teve outrora pela tia dele, o que se pode comparar a quando, na cena seguinte, a abelha ataca o Godzilla, isto é, quando a mulher ataca a força instintiva do homem, gerando desdobramentos inéditos até então.

Com o filme tendo uma trilha instrumental melancólica, remetendo todo o sentimento de memória distante do Mauro durante a narração do Leonardo, contrastando com a trilha mais intensa das ações do Godzilla e com a música do Raça Negra embalando a aura sentimental de Albaniza, os últimos instantes da obra trazem uma perspectiva distinta, de esperança no porvir.

Em um céu claro, com poucas nuvens, paraquedistas pousam na terra ao som de uma música dançante, que se estende até o término da película, exprimindo como as lembranças do tio estão mais bem organizadas na mente dele.

E é nesse clima de esperança que o filme finaliza, ao mostrar que, assim como os paraquedistas terminaram o voo e pisaram novamente em terra firme, voltando ao seu lugar de origem, o Godzilla caminha no mar em direção à montanha, pois a gente sempre volta pra casa domingo de manhã.

Uma carta para tio Mauro

Por Márcio Correia (Caruaru | PE)

Mauro em Caiena é uma história de idas e voltas. Mas não concretamente. Narrado em primeira pessoa, o que parece ser uma carta para tio Mauro é repleta de lembranças e da tentativa de resgatar memórias, às vezes até imaginadas pelo narrador, seu sobrinho.

Mauro, foi o parente que sempre desafiou, não necessariamente de um jeito ruim, a calmaria de sua família. O banho de chuva que não aconteceu, por exemplo, dá o tom da turbulência que ele sempre causou. Seu sonho de viver em outra realidade o levou a morar em outro país. E isso causou uma desordem que com o tempo foi mudando de perspectiva.

Mesmo o tempo do filme sendo atual, a coloração dele em preto e branco e a narração dão a sensação de ser uma história cheia de passado. O que de fato é. As aparições no natal, as ligações em horários estranhos, a música do Raça Negra. O som é um grande aliado para contar essa história. A narração por vezes interrompida pelo som natural das cenas, dão o efeito de proximidade com a história. E isso não acontece de um jeito solto ou desconexo. Os ruídos e sons ambiente se tornam parte da narrativa.

Além disso, também existe a sensação de se ver na história. Digo isso, pois todo mundo tem ou conhece um Tio Mauro. Ele é aquele parente que vai embora ou que leva uma vida completamente diferente da que sua família provavelmente está acostumada. Eu por exemplo, sou essa pessoa na minha família.

O texto em si casa muito com as imagens colocadas. Inclusive com as cenas do filme Godzilla. São essas cenas, que iniciam e finalizam o filme, e que podemos ler como uma metáfora. No início do curta, o Godzilla, depois do seu despertar, causa o caos. No fim do curta, as cenas do Godzilla utilizadas mostram o caos se tornando calmaria com sua partida. As cenas estão inseridas de uma forma bem direta.

Para além da real interpretação do filme Godzilla e para o que de fato acontece em todas suas franquias, a interpretação para esse momento pode parecer óbvia: enquanto vive na Guiana Francesa, o tio Mauro deixa em Fortaleza o caos. Apenas com sua chegada, viria consigo a calmaria tão esperada. Mas ouso pensar o contrário.

O a gente volta pra casa domingo de manhã na verdade se dá em oposição a isso. Hoje, sua família vive das lembranças. A imagem de Mauro virou uma espécie de mito. A intenção do diretor aqui, foi de revelar que a calmaria não está presente quando o Tio Mauro está entre eles, e sim quando ele está na Guiana Francesa e quando ele estabelece o sentimento de saudades.

A calmaria se dá com a sua cama arrumada, seu guarda roupa vazio, o portão levemente encostado. Por destoar do comum. Quando ele vem a fortaleza, tudo vira caos. Mas não necessariamente um caos ruim, suas manias que causam estranheza. O modo de falar que mudou, a exigência de pedir a bença, o seu jeito… E nesse momento é que percebemos a mudança de perspectiva, quando entendemos que apenas o lugar dele agora é outro. É Caiena.

Ruído como metáfora

Por Sávio Lopes (Jaciguá | ES)

O ruído antecede as palavras. A vibração mais elementar é o que nos acompanha em qualquer espaço que estejamos. Conscientes ou não. É o ruído produzido no atrito entre um prato e um talher que, a alguns pode evocar as refeições da infância – a outros, pode converter-se em música, como nas mãos do músico Moreno Veloso. Mesmos elementos, outras mãos (e significados). Há uma longa tradição na música que passa pelo protagonismo dos ruídos.

O premiado curta-metragem Mauro em Caiena, ao que parece, acopla-se a esta tradição como filme. Lançado em 2012, em seus quase dezenove minutos, o curta foi premiado tanto nacional, quanto internacionalmente (Bahia, Ceará e Belo Horizonte, Paris e Portugal – só para citar alguns). Dirigido e Roteirizado por Leonardo Mouramateus, que também participa do Som; junto com Lucas Coelho de Carvalho e Rodrigo Fernandes, traça, através de duas linhas sonoras, diferentes abordagens: uma estável e outra instável.

Todo feito em preto-e-branco, iniciado com cenas do longa “Godzilla”(1954); o filme começa com uma trilha instrumental tensa durante a reprodução do longa que termina com um foco no olhar do monstro. Corte e, na sequência em primeiro plano, apresenta-se Marquinhos, sobrinho de Mauro, a que o título faz referência. Marquinhos, é inserido no curta através de grunhidos que, dada a transição do olhar do Godzilla e sua primeira aparição, dá-se a entender, que o sobrinho de Mauro emula os grunhidos e caretas do monstro. A narração, a primeira linha sonora (a da estabilidade), começa apenas aos 1m33s e em tom epistolar.

Ao longo do curta, há diversos intervalos entre a narração em off e os períodos de apenas captação de ruídos, falas desconexas, enquanto se estabelece, a ambientação do filme na conexão entre essa captação e a utilização de planos gerais. Mesmo quando há diálogos, a opção do diretor é sobrevalorizar o ruído em detrimento do diálogo: na cena em que Marquinhos vai descer de pneu em um monturo de areia de e ruínas. Quando o diálogo começa, a captação do ruído dos automóveis se sobrepõe. É uma opção pela interdição do diálogo, pela fragmentação. Esta é a segunda linha, a da instabilidade.

Alternando entre as duas linhas sonoras (estabilidade e instabilidade), há momentos em que a solidez monocórdica da narração se cruza com a fragmentação caótica e multisonora para dar luz à uma contraditória memória. Quando a avó entra em cena no plano detalhe cortando carne e, na sequência, migra para um plano médio, com diálogos e ruídos em menor volume, e com a música “Deus me livre”, interpretada pelo grupo Raça Negra em destaque, fica evidente as contradições dos sentimentos em relação à fuga de Mauro para Caiena. Um trecho: “/Te amo, mas não quero/Nem te ouvir e nem te olhar/Por isso, Deus me livre/Eu tenho medo de (Voltar)/Vem!/Me fez sofrer demais/Mas te olhando eu fico bobo/Por isso, Deus me livre/De encarar (Você de novo)/. E a avó confirma: “Vixe, que coisa parecida com Mauro!”.

Parece, ao longo de todo o curta, nunca haver espaço para o discurso único, puro: mesmo nas cenas em que há um domínio evidente de uma camada sonora, há uma multiplicidade de sons habitantes, que tensionam a estabilidade. Há sempre mais acontecendo.

Aos 8m50s, quando uma retroescavadeira assume a centralidade do plano aberto e narrador continua a relatar as intempéries do tio para atravessar a fronteira rumo à Guiana Francesa, somos, novamente, surpreendidos pelo crescendo do som maquínico do monstro de metal. Em resposta à pergunta do narrador: “Mas que lado?”, referindo-se à história que a avó lhe conta, temos que nos contentar com o mais fundamental das respostas: o ruído, a pre-palavra. O que cala mais fundo. O que se comunica com as nossas maiores fragmentações e controvérsias.

Há um padrão que parece se repetir: máquinas são filmadas em plano aberto (com distanciamento imagético) mas com grande proximidade sonora: os realizadores do filme parecem querer nos lançar ao mesmo tempo, dentro da experiência cotidiana dos impactados pela ausência de Mauro e mostrar com certo distanciamento sua ausência.

Um pouco após os treze minutos, o narrador: “Fico feliz que você sempre liga para cá quando sonha com alguém daqui”. O trecho destacado evidencia (desta vez, pelas palavras, antes de tudo, som) que a relação estabelecida é do onírico, da imprecisão, da névoa. Uma ficção grosseira.

A partir dos catorze minutos, uma música eletrônica parece ser disparada por um pequeno dispositivo eletrônico. Ela surge de maneira periférica, secundária e assume o protagonismo próximo aos 15 minutos e vai até o fim do curta. É aqui que tudo combina: narração, música e o caos, a fragmentação. Agora, a imprecisão não está nos ouvidos, mas nos olhos. O filme encerra com referência ao mesmo longa do início (Godzilla, 1954).

No entanto, o foco está na cabeça do monstro (lugar do cérebro, da memória): sua cabeça gira, sugerindo uma confusão, um incômodo, um embaralhamento. Trilha eletrônica bem estruturada com o caos na tela. Instabilidade e estabilidade.

Deixe uma resposta