Críticas | Mormaço (PE, 2021, Carol Lima)

Críticas | Mormaço (PE, 2021, Carol Lima)

Imagens e sons num movimento revelador e lírico

Por Elpidio Rocha (Montes Claros/MG)

Mormaço é um curta-metragem de 2021, dirigido por Carol Lima, com duração de 11 minutos. A sinopse informa que se trata de uma “abordagem ensaísta” com teor documental, reproduzindo depoimentos sobre “as vivências e narrativas que atravessam os corpos lésbicos”.

Graduada em Cinema e Audiovisual pela UFPE, Carol Lima desenvolve pesquisas e produções artísticas em torno de narrativas em primeira pessoa e autorretratos. Sua filmografia inclui os curtas Espelhos (2019) – que retrata a autodescoberta da cineasta e se define como “um autorretrato em movimento” – e Velcro, que está em fase de pré-produção. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPE, Lima atua como diretora, roteirista e fotógrafa em projetos fotográficos e audiovisuais.

Em entrevista à rádio Frei Caneca FM, a cineasta comentou sobre a concepção do curta: “Lembro que quando eu tinha 15 ou 16 anos, baixava torrents, ia em sites de filmes de sapatão e pesquisava. O núcleo era tão pequeno que, em um mês, eu assistia a todos, e todos tinham finais bem trágicos. Eu queria ver vivências com finais abertos, como a vida é, que mostrassem também um lado de celebração. Então, Mormaço é um documentário com relatos reais. Ele nasce de anotações que fiz quando era mais nova. A gente somou um texto muito lindo de Renatinha, e aí entraram esses relatos.”

São imagens de água em movimento, acompanhadas de falas em off, revelando as dificuldades, descobertas e, de certa forma, as personalidades das mulheres lésbicas que compartilham histórias poderosas e reveladoras. O lirismo e a precisão da sintonia entre imagens e falas são essenciais para envolver os(as) espectadores(as) e nos conectar emocionalmente à narrativa. O título é esclarecedor: mormaço é a neblina quente e úmida que nos envolve, remetendo à umidade, ao calor e ao suor que o fluxo do curta transmite com qualidade técnica e de conteúdo.

A perspectiva do gozo feminino, abordando a umidade e os movimentos cadenciados do ato sexual (metaforizados pela água que se move nas cenas), reforça a ideia de prazer evidenciada nos depoimentos e consolida o teor poético do curta. Ao final do curta, enquanto os créditos aparecem na tela, encontramos a própria Carol Lima entre as vozes que apresentam os depoimentos. A narração que, de certa forma, conduz a narrativa é de Renata Pimentel. Ambas, responsáveis pela criação de Mormaço, estão também unidas na realização de Velcro: ambientado no centro do Recife, o curta contará a história do encontro entre Dayane e Josy, duas mulheres lésbicas que compartilham o sonho de cantar e viver da música.

As rochas, imóveis e firmes, que sinalizam o término de Mormaço, simbolizam a força, a resiliência e a resistência das mulheres que se expõem em falas tão reveladoras ao longo da narrativa. Sem dúvida, um belo trabalho a ser conhecido e recomendado ao público.

Ondas de Resistência

Por Murilo Fernandes (Arcoverde/PE)

Uma outra forma de fazer cinema. A estética de vídeo-poesia é interessante, mesmo não sendo minha predileção. O filme começa com o mar, as ondas, o fluxo que traz uma sensação de calmaria, mas que aos poucos se torna pesado. Não só pelo movimento das águas, mas principalmente pelas falas das protagonistas. Relatos reais mexem com o espectador, mesmo que não haja identificação direta. São falas de situações que ouvimos mundo afora, especialmente na internet, e, ainda que não sejamos o alvo, vemos o impacto que essas palavras causam em quem as escuta.

O filme não só se diferencia esteticamente, seguindo um caminho incomum e distante da jornada do herói ou outros arquétipos narrativos, como também nos leva à reflexão sobre o que dizemos e ouvimos. Ele desperta empatia pelas pessoas que sofreram esses abusos ao longo da vida, enquanto um belo acervo de imagens é exibido, acompanhando nossos pensamentos.

A escolha da diretora de iniciar o filme no mar, terminá-lo na areia e exibir os créditos sobre rochas simboliza as histórias dessas mulheres. No início, as ondas calmas do mar representam o começo de suas vidas, suas descobertas, o momento em que decidiram assumir quem são. À medida que as ondas aumentam, surgem as turbulências, os preconceitos e as provações que enfrentam. A areia reflete a camada de resiliência que se forma sobre elas, tornando-as mais fortes. E as rochas representam quem elas se tornaram – sólidas, firmes, prontas para viverem suas verdades.

No conjunto, é uma obra interessante. Mostra que existem diferentes formas de fazer cinema, de ser criativo, e de expressar aquilo que está preso no peito com elegância e arte. A diretora, Carol Lima, tem como foco pesquisas e produções artísticas em torno de narrativas em primeira pessoa e autorretratos. Além de dirigir, fotografar e co-roteirizar o curta-metragem Mormaço, ela está trabalhando em um novo projeto, o curta Velcro, como co-roteirista e co-diretora, que atualmente está em fase de pré-produção.

Entre Marés e Vozes

Por Bruno Penedo (Rio de Janeiro/RJ)

Em Mormaço (2022), de Carol Lima, a diretora explora infinitas possibilidades das experiências de mulheres lésbicas. O curta, que conta com narração em off, nos apresenta relatos sensíveis sobre resistências lésbicas e experiências sáficas singulares. A escolha de Carol pelo uso de imagens como ondas, marés, pedras e cenas oníricas desafia o cinema documental tradicional, que geralmente associa diretamente o que se ouve ao que se vê. Ao propor novas conexões, Carol tensiona os modos de produção cinematográfica e experimenta novas formas de criar filmes com temáticas queer.

No início do filme, os relatos abordam o processo de identificação com a identidade lésbica, assim como as vivências de lesbofobia que marcam a trajetória de pessoas LGBTQIA+. Contudo, o filme vai além dessas narrativas, trazendo de forma poética diferentes relatos afetivos e reflexões que questionam a colonialidade e a cisheteronormatividade.

As imagens das ondas e marés são um convite para refletirmos sobre as potências das experiências lésbicas como práticas de liberdade, conforme nos ensina bell hooks. Uma das falas mais marcantes do filme é: “As águas, quem pode domá-las? A correnteza é um fluxo que não se adestra nem aceita coleira.” Dessa forma, Mormaço possibilita novos olhares de resistência e aponta caminhos inventivos, sugerindo outras formas de ouvir e de ver.

O mar e o amar: Narrativas de amor e de liberdade

Por Lecco França (Salvador/BA)

Mormaço, classificação gramatical: substantivo masculino. Em contraste com o gênero da palavra, segundo as normas da língua portuguesa, a narrativa fílmica em questão explora as experiências de mulheres lésbicas. Mormaço, significado genérico: “Tempo quente, úmido e abafado, geralmente acompanhado por uma neblina característica que não indica nem resulta em chuva”. No filme, a trama é construída a partir de contrastes nas texturas, como a transição entre a água do mar, a areia da praia e as pedras, e também da sinestesia, utilizando palavras, sons e imagens associadas às diferentes sensações percebidas pelo corpo humano (visão, audição, olfato, tato) e ritmos (na leveza da poesia e na intensidade das ondas do mar).

No sentido popular, a palavra também significa “aquele que incomoda, importuna; quem é muito chato, desagradável”. Nos depoimentos e poemas declamados, as personagens expõem suas vivências desconfortáveis com o machismo e a lesbofobia. Na constante luta por representatividade e disputas discursivas, filmes como esse têm possibilitado a visibilidade de sujeitos historicamente marginalizados, como as mulheres lésbicas, ao expor seus sentimentos, compartilhar suas experiências e desconstruir imagens estereotipadas dessas existências.

Outro sentido popular da palavra é: “relação afetiva entre duas pessoas; namoro”. O filme explora exatamente o amor entre duas mulheres, como simbolicamente mencionado por uma das personagens: “Numa noite de verão, encontrei o amor”. Além disso, Mormaço destaca a importância da descoberta do verdadeiro gozo sexual nas relações entre essas mulheres, o reconhecimento de suas sexualidades lésbicas, rompendo com a heteronormatividade e legitimando suas liberdades: “Meu corpo é lésbico”, afirma outra personagem.

O curta-metragem, dirigido pela cineasta pernambucana Carol Lima, é um misto de documentário, ficção e experimentalismo poético, construído para dar visibilidade às experiências subjetivas de mulheres que descobrem o amor e o prazer em relacionamentos com outras mulheres. A narrativa rompe com a construção formal ao colocar o mar como protagonista, intercalando suas imagens com os depoimentos das personagens em voz off, muitas vezes em simbiose com os corpos e sensações dessas mulheres que também protagonizam a história.

Nesse sentido, a experiência de Carol Lima como fotógrafa, já que também assina a direção de fotografia do filme, traz um diferencial significativo à obra, especialmente por sua familiaridade com autorretratos, o que imprime um olhar mais intimista ao produto.

Lançado em 2021, o filme tem circulado por diferentes festivais nacionais, como o Festival de Vitória, o Cine PE e a Jornada de Estudos do Documentário. Além de Mormaço, Carol Lima já havia dirigido outro curta-metragem, Ensaios (2019), e participa como corroteirista e codiretora do curta-metragem Velcro, em fase de produção. Uma característica marcante em sua obra é a construção de narrativas em primeira pessoa, já que a própria diretora também participa de Mormaço como uma das vozes que se apresenta em cena, compartilhando sentimentos e experiências de uma mulher lésbica.

Textos produzidos por participantes da terceira edição do Módulo Olhar do F(r)icções – Laboratório de Ensaios de Cinema, que aconteceu de 16 a 19 de setembro de 2024, ministrado por Márcio Andrade e Sandro Alves de França. A formação contou com realização da Combo Multimídia, incentivo do Funcultura e em parceria com a Mostra de Diversidade Sexual no Sertão do Pajeú e a Xérem Produções.

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