Críticas | Quebra Panela (PE, 2022, Rafael Anaroli)

Críticas | Quebra Panela (PE, 2022, Rafael Anaroli)

Da simplicidade e do imaginado

Por Marcelo Cesar (Belo Horizonte/MG)

A abertura do curta Quebra Panela, do diretor Rafael Anaroli, cativa a minha atenção pela similaridade e pela lembrança que me remete à abertura do filme Ninfomaníaca – Volume I (2013), do diretor dinamarquês Lars von Trier, um dos fundadores do Dogma 95. Em Ninfomaníaca, um black (tela totalmente preta) nos faz escutar, por quase dois minutos, o som diegético de água escorrendo por um muro, um ventilador rodando lentamente, água batendo em um latão, goteiras caindo e, por fim, uma corrente com arruelas. Só nos atentamos a esses detalhes nos minutos seguintes, quando somos apresentados à cena de abertura pós-black, na qual encontramos o corpo de Joe (Charlotte Gainsbourg) caído ao chão. Um rock metal, Führe Mich, da banda Rammstein, entra em cena. A partir daí, conhecemos os personagens do filme, e ele realmente começa.

Assim também começa Quebra Panela: os créditos aparecem sobre um black, enquanto ouvimos um diálogo em over, com uma voz feminina pedindo informações. Barulhos que parecem vir de um movimento de rua complementam os diálogos. O estado de não ver o que está acontecendo cria imagens ricamente produzidas pela nossa mente, como a cena do assassinato no banheiro em Psicose (1960), na qual não vemos as facadas, mas apenas as sombras e o som agudo do violino de Bernard Herrmann, que gera cenas aterrorizantes em nossa imaginação. Outro fator interessante é que o filme começa sem, de fato, ter começado. Normalmente, os filmes se iniciam após os créditos, mas aqui Anaroli faz uma escolha que, no meu entendimento, já anuncia um jogo entre a construção cinematográfica e a realidade. O diretor utiliza, de forma muito inteligente, a metalinguagem ao longo de todo o filme. Sua abertura é como uma “assinatura de contrato” com o espectador, preparando-o para o que está por vir. Eu, particularmente, aprecio muito esses jogos cinematográficos — acordos entre diretor e audiência.

Um travelling, ainda com fundo escuro, nos apresenta um rádio-relógio marcando cinco horas da manhã. Uma criança acorda, e o relógio despenca. A religiosidade e o sincretismo do povo desta cidade ou casa de Solange são fortemente mostrados por um altar com duas imagens de religiões diferentes (que parecem ser Iemanjá e Santo Antônio). A menina Estela olha fixamente para um quadro de Adão, com uma Eva apagada (provavelmente condenada por Solange), diante de uma macieira. Estela recebe uma maçã. Esses são detalhes de um diretor que brinca com o sincretismo de um povo simples, mas com uma fé inabalável nessas divindades.

O olhar desconfiado da criança é muito representativo. Será que essa nova geração seguirá todo esse ritualismo? Estela joga a maçã pela janela do quarto. Estaria Estela negando o Pecado Original? Todo esse jogo de elementos — como o altar multirreligioso, a camisa de Solange e os vários quadros de santos, com um vaso enorme de espada-de-São-Jorge — nos mostra a força da fé desse povo, que sofre, resiste e, ainda assim, consegue ser feliz. A importância de uma delicada e bem construída direção de arte — pontos mil para Lia Letícia. Cada detalhe desta cena nos conta muito sobre esse povo.

Rafael “brinca” (com todo o respeito ao trabalho sério que nos apresenta) o tempo todo com intertextualidades visuais. Um exemplo é a cena em que Solange, olhando por uma fresta de uma janela (seria uma referência a Janela Indiscreta, de 1954?), procura entre a equipe de filmagem por Irandhir Santos, ator pernambucano, ou personagens de Bacurau (2019), filme maravilhoso dos diretores Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, também pernambucanos. O diretor faz uma linda homenagem aos cineastas e atores filhos dessa terra. O próprio Rafael se filmou como personagem e diretor do filme que ele dirige.

O filme se passa todo na porta da casa de Solange, mostrando como essa ação de filmar pode “atrapalhar” a vida cotidiana dos moradores dessas pequenas cidades. Eles recebem uma equipe inteira com uma parafernália enorme de fios, câmeras, lentes, trilhos, tripés e refletores. Temos casos hilários sobre como Bacurau mudou a vida dos moradores do povoado de Barra, no município de Parelhas, e da zona rural do município de Acari, no Rio Grande do Norte.

O diretor tem um humor sutil e muito sensível. Aos cinco minutos de filme, a atriz transgênero entra na casa de Solange, e ela fica sem saber se a chama de “ele” ou “ela”. A situação é engraçada e reflexiva, pois nos faz pensar na dificuldade que pessoas mais velhas, especialmente de cidades do interior, têm para entender toda essa transformação pela qual a nossa sociedade passa, especialmente em relação à reatribuição de gênero.

Finalizando, além de fazer uma homenagem ao cinema — para mim, o principal mote do curta —, Anaroli traz à tona a simplicidade, os costumes e a beleza do povo do interior de Pernambuco. Ao mesmo tempo, faz um manifesto político, chamando a atenção para a dificuldade de se trabalhar com essa arte que tanto nos orgulha — Solange se transforma na cena final. O filme ainda conta com uma trilha sonora maravilhosa, interpretada por Paulo Netto e Isabela Moraes: a sensível música intitulada Do Recado, que nos leva a refletir sobre a existência no cinema. Que Rafael Anaroli continue nos trazendo esse frescor do novíssimo e maravilhoso cinema nacional.

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Sobre o diretor: Rafael Anaroli é um jovem cineasta pernambucano, nascido na cidade de Condado. Já produziu e atuou em mais de vinte obras audiovisuais (curtas, webséries, séries e novelas). Também trabalhou como assistente de direção, produtor, diretor, roteirista e preparador de elenco. Rafael coordena projetos como Figura ou Personagem, que são oficinas de atores, e o Festival de Filmes No Sétimo Dia. O curta Quebra Panela, analisado nesta crítica, já foi exibido em mais de 30 festivais, ganhando mais de 20 prêmios. A 6ª edição do Laboratório Negras Narrativas (LNN) selecionou o longa Coração Gigante, de Rafael Anaroli e Juliana Mota, para produção. Este laboratório é uma iniciativa da Associação APAN (Audiovisual Negro) e conta com o patrocínio da Amazon, MGM Studios e Prime Video.

Quebra Panela com Poucos Doces

Por Luiza Côrte

Usando a linguagem cinematográfica, o metalinguístico Quebra Panela carece de coesão narrativa. É possível compreender a mensagem que o filme, dirigido e escrito por Rafael Anaroli, quer transmitir, mas falta um sentido mais claro na história.

Solange, uma manicure, tem sua rotina interrompida pela gravação de um filme em sua rua. No entanto, por não entender como funciona uma filmagem — ou por simplesmente não se importar —, ela continua falando alto e aparecendo na porta de sua casa, atrapalhando as filmagens e forçando o diretor a gritar “corta” repetidamente. Sua cliente remarca a sessão, pois não consegue entrar na rua, o que nos mostra que o filme também interfere na vida de Solange, impedindo-a de trabalhar e ganhar dinheiro, tornando-se assim um problema em sua vida.

Em um momento mais à frente, surge uma fala emocionante e que sintetiza bem o propósito do curta: “A gente nasceu e permanece aqui porque acha que não pode se ajudar, mas a gente pode se ajudar. Mas é um estranhando o outro, um querendo ser melhor que o outro…”. Essas palavras deixam claro que a mensagem do diretor é que, apesar de o audiovisual ainda ser uma área muito elitista, é possível fazê-lo com companheirismo. Além disso, a fala reflete a realidade de que, muitas vezes, as gravações audiovisuais podem atrapalhar a vida das pessoas que vivem nas locações, sem que a equipe de filmagem se importe com isso.

Contudo, a relação entre Solange e o set de filmagem carece de maior desenvolvimento. Poderia haver mais embates e diálogos. Por exemplo, Solange poderia ter perguntado quando as gravações terminariam e explicado que estava perdendo clientes e, consequentemente, dinheiro. Ela poderia ter cobrado da equipe uma compensação financeira pelo prejuízo. A equipe, por sua vez, poderia ter usado o discurso da “comunidade se ajudando” para mostrar a Solange que o filme exalta e valoriza Condado, fazendo com que ela desejasse participar do projeto. A brincadeira de quebra-panela, que dá nome ao filme, poderia ter sido mais presente e relevante, para justificar o título da obra.

No final, descobrimos que o “quebra-panela” está com poucos doces, ou seja, o que se tira de positivo do filme é a metalinguagem, a representação do set de filmagem, a fotografia e a direção de arte, mas faltam elementos que deem mais consistência à narrativa.

Textos produzidos por participantes da terceira edição do Módulo Olhar do F(r)icções – Laboratório de Ensaios de Cinema, que aconteceu de 16 a 19 de setembro de 2024, ministrado por Márcio Andrade e Sandro Alves de França. A formação contou com realização da Combo Multimídia, incentivo do Funcultura e em parceria com a Mostra de Diversidade Sexual no Sertão do Pajeú e a Xérem Produções.

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