Recife, 12 de fevereiro de 2021.
Às 14:24, inicio a escrita desse texto que nasce do desejo de refletir o exercício das temporalidades no documentário Estou me guardando para quando o carnaval chegar (2019, Marcelo Gomes). Relembrando as cenas do filme e o modo como questionavam as relações de tempo e trabalho que surgiram nos últimos anos em Toritama, percebo como o contexto em que esse ensaio nasce se relaciona com o cenário do próprio filme.
No filme, o cineasta Marcelo Gomes nos conduz por meio de sua narração em voice over às memórias de sua infância na cidade de Toritama, alternando-a às imagens do presente. Atualmente, a cidade pode ser considerada um centro ativo do capitalismo local, com mais de 20 milhões de jeans sendo produzidos anualmente em fábricas caseiras. No filme, o modo como as imagens são construídas de modo a dar a ver o tempo como matéria prima, com planos longos e estáticos que criam uma fricção com o movimento repetitivo e fugaz das mãos que trabalham.
A diferença entre os ritmos dos corpos registrados e da câmera que os observa funciona como um espaço em que formas de olhar o mundo se cruzam e partilham o tempo, configurando-se como “um objeto determinado por aquilo que o condiciona e propõe ao desejo de um sujeito que se torna, por sua vez, o objeto da imagem” (MONDZAIN, 2015a, p. 39). Nessa relação entre objeto e sujeito, as forças que se imprimem em uma imagem exibem modos distintos de ver e de suas condições de existência, em que os tempos da contemplação e da produção se chocam.
Orgulhosos de serem os próprios chefes, os proprietários das fábricas apresentadas no filme de Gomes trabalham sem parar em todas as épocas do ano, exceto o carnaval: quando chega a semana de folga, eles vendem tudo que acumularam e descansam em praias paradisíacas. Esses personagens vivem trabalhando nas confecções de jeans em Toritama, abordadas pelo diretor que vivia constantemente na cidade em sua infância, quando seu pai a visitava para fins de trabalho. Na conexão entre suas memórias e as diferenças em relação ao presente da cidade, Gomes reflete sobre como as configurações de trabalho mudaram as dinâmicas temporais e espaciais da cidade:
‘O documentário narra essa expropriação do tempo por meio do espaço quando, por exemplo, mostra que, nas facções, o ambiente fabril constitui a própria casa, com pouca ou nenhuma distância entre a máquina de costura e a mesa posta em que se almoça ou janta, enquadradas num mesmo plano’ (SERELLE, 2020, p. 278)
De uma cidade silenciosa e com um tempo mais lento, Toritama se torna uma cidade cada vez mais barulhenta e veloz, sem tempo para a contemplação, para a inação ou para o ócio. A cidade interiorana começa a se assemelhar às grandes metrópoles e a propor condições trabalhistas mais próximas das dinâmicas que atravessam as discussões nos mais diversos empreendimentos. A ideia de ser ‘dono do próprio tempo’ caminha lado a lado com a precarização do próprio trabalho, pois nem sempre se torna sinônimo da tão sonhada qualidade de vida.
‘Meu pai era fiscal de tributos. Hoje, sou um fiscal do tempo alheio. Sou tomado pela lembrança do meu pai e pela angústia dessa repetição. O tempo coletivo preenchido por um trabalho sem fim’. Em certo momento do filme, Gomes compõe uma cena em que os movimentos repetidos dos corpos que costuram vários bolsos de uma calça jeans incomodam pela repetição de ruídos das máquinas. Esse olhar subjetivo sobre um contexto coletivo nos lança para um outro tempo, alheio ao tempo da produção e, ao mesmo tempo, incomodado com as condições de vida daqueles sujeitos.
Esse tempo da reflexão cria as possibilidades do sujeito pensar a si mesmo, seu próprio contexto e, talvez, almejar outros modos de viver e se narrar. Contudo, acredita-se que esse seja um privilégio que os habitantes de Toritama não podem ter: refletir sobre si mesmos. Explorar um olhar sobre as potências e significados do gesto de narrar atravessa duas dimensões da antropologia contemporânea: uma, que se refere à diversidade dos modos de contar histórias como um gesto que, paradoxalmente, universaliza a experiência humana; outra, do exercício de narrar como uma busca de sentido no encontro com o outro a partir do compartilhamento dessa experiência (MALUF, 1999).
A escolha por um olhar nostálgico a essas condições nasce de uma condição de vida que permite que se revele uma crítica ao sistema que imprime aos sujeitos tomar o trabalho não como forma de produzir subjetividade, mas, pelo contrário, de anulá-la em prol do atendimento a um serviço. Atravessado pelo choque entre o tempo da contemplação e o tempo da produção, o filme de Gomes cria um atrito entre essas temporalidades e os modos como os consumimos. Enquanto o tempo do ócio cria espaço para olhar a existência em movimento, o tempo da produção não permite reflexão ou inação. Pelo contrário, os tempos esvaziados de direção terminam sendo questionados e sofrendo a alcunha de preguiça, de tédio ou de improdutividade.
Contudo, os tempos da improdutividade podem, pelo contrário, nos conduzir a produção de nós mesmos. Pensar a elaboração narrativa na singularidade dessa trajetória pessoal e compartilhada implica entendê-la “como parte de um processo ao mesmo tempo subjetivo e social e, de outro, o exame da situação de enunciação ou de performance e da própria narrativa em sua totalidade” (MALUF, 1999, p. 75), buscando seus sentidos enquanto a situação narrativa acontece. Contudo, nas memórias de Marcelo Gomes, quando o autor se assume como testemunha de seu próprio tempo, de alguma forma, o objeto de seu discurso ultrapassa a esfera individual e se desdobra na história dos grupos sociais e históricos aos quais ele pertence.
Aqui, quando evoca a memória nostálgica de um tempo da infância, Gomes lança mão de um desejo por lentidão, por querer encontrar na cidade em que cresceu o oásis de uma vida pacata em meio às correrias da metrópole. Liberta desse estereótipo, as dinâmicas de Toritama caminham em direção a um lugar de muito trabalho e pouco lazer, pois seus habitantes cultivam o hábito de vender todos os seus bens para viajar durante o Carnaval. Ou seja, um ano de trabalho constante e repetitivo culmina em uns poucos dias de lazer e de usufruto do próprio trabalho:
‘Toritama vive a presentificação constante do trabalho, e esse modo de vivência não deixa brechas para que esses trabalhadores possam sair do loop infinito de exploração, e só vislumbram alguma alternativa de transgressão a esse sistema (aqui fica a indagação se esse processo transgressor se dá de modo consciente ou não), quando ocorre possibilidade de um afastamento físico daquele espaço’ (BISPO, 2020, p. 231)
Guardadas as devidas proporções, é possível afirmar que não vivemos em uma comunidade tão diferente desta cidade. Por mais que os moradores de Toritama vendam geladeiras, fogões etc.. para terem alguns dias distantes da cidade em que vivem voltados para o trabalho, as dinâmicas em uma metrópole como Recife terminam sendo semelhantes. Mesmo carregada de acessos a lazer e de privilégios, vivemos constantemente para o trabalho e alimentamos cada vez mais os discursos em torno da venda do próprio tempo, da flexibilização das condições trabalhistas com a justificativa de ‘oferecer mais empregos’ e assim por diante.
Nesse sentido, o filme de Gomes funciona como um espelho para nossas próprias condições de trabalho, assinalando o “irredutível distanciamento que separará sempre todo o humano do acesso ao seu próprio rosto a não ser por via do reflexo e da deslocação” (MONDZAIN, 2015b, p. 68) e consentindo a partir do imaginário a possibilidade de se constituir a partir de um outro olhar – e de outro do olhar. Nesse movimento, a voz de Gomes que toma todo o filme aparece como esse olhar, ao mesmo tempo, estrangeiro e familiar. Ele assume as próprias ambivalências ao nos permite ver a trajetória daquelas pessoas com certa distância e condescendência, como se não fizéssemos parte do mesmo sistema:
‘A narração de Gomes é uma forma de resistência ao presente capitalista e seu tempo comercial uma vez que recupera, ainda que por meio da linguagem, valores que Cantor, em diálogo com Pasolini, julga fundamental para os vínculos solidários: quietude, relações duradouras, possibilidade de contemplação, entre outros aspectos de um tempo lento’ (SERELLE, 2020, p. 281)
Escrevo esse texto em meio a uma série de projetos incentivados por meio dos editais emergenciais do Governo do Estado de Pernambuco, por meio da Lei Aldir Blanc, que carregam variados problemas conectados ao modo como as políticas públicas são gerenciadas no estado. Diante das condições de trabalho problemáticas a que os fazedores de cultura precisam se submeter para conseguir se sustentar, como posso me distanciar daqueles sujeitos que vendem seu tempo para conseguir fugir para curtir o carnaval em outra cidade. Em 2021, escrevo esse texto às vésperas de um carnaval cancelado pelo Governo do Estado, que não promoverá financiamento para as atividades de artistas, grupos, agremiações carnavalescas e outros tantos fazedores de cultura que se sustentam a partir dessas festividades.
Diante de tudo isso, me pergunto se também não estamos vivendo a ilusão de ser ‘donos de nosso próprio tempo’, quando, na verdade, continuamos nos submetendo às regras e condições impostas pelo nosso ‘empregador’. Nesse contexto, o filme de Gomes revela as próprias contradições de nosso próprio modo de olhar ao expor seus próprios privilégios. Ao tomar o tempo como matéria em seu desejo de reviver um tempo mais ralentado e menos produtivo, Gomes expõe as fraturas da manufatura dessa mesma matéria, vendida como moeda de troca em prol de quatro dias de lazer e ócio.
Referências
BISPO, Franciele. Estou Me Guardando para Quando o Carnaval Chegar: tempo, trabalho e autonomia no Brasil contemporâneo. Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n.1, 2020.
MALUF, Sônia. Antropologia, narrativas e busca de sentido. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 5, n. 12, p. 69-82, dez. 1999
MONDZAIN, Marie-José. A imagem entre a proveniência e a destinação. In: ALLOA, Emmanuel (org.). Pensar a imagem. 1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015a.
_____________________. Homo Spectator: ver, fazer ver. 1ª ed. Lisboa: Orfeu Negro, 2015b
SERELLE, Márcio. Narrativa sobre um poder afável: trabalho e racionalidade neoliberal em Estou me guardando para quando o Carnaval chegar. Rumores, n. 28, v. 14, jul-dez 2020.