Ensaio |  Quando a imagem nos aprisiona e quando nos liberta

Ensaio | Quando a imagem nos aprisiona e quando nos liberta

Imagens – Divulgação | Arte – Rodrigo Sarmento

Por Déa Ferraz

Roteirista e Diretora (PE)

O ano era 2012. Ainda não havia sinal das manifestações de julho de 2013, tão pouco de que um golpe se desenhava. A presidenta Dilma Rousseff estava em seu primeiro mandato, quando começo a imaginar o que viria a ser o filme Câmara de Espelhos. Penso uma ideia como uma gestação, uma semente que brota em alguma parte de nosso corpo e que, alimentada por nossas leituras, contextos e vivências, vai crescendo e tomando forma. Cada filme que dirijo nasce de uma parte do meu corpo e com Câmara de Espelhos não foi diferente. Um filme que vem das entranhas, esse lugar embrulhado, emaranhado, onde jogamos com os medos, os enjoos, os não-ditos. Lugar de incômodos. O corpo que se retorce na tentativa de entender seu lugar no mundo.

Estamos em 2021 e ainda hoje, agora, enquanto escrevo, voltar a mergulhar nesse filme é embrulhar o estômago. O coração acelera, a boca resseca, a respiração pede atenção. Respiro. Não imaginei que seria tão difícil voltar a falar sobre ele. No entanto, a violência, sabemos, não é algo que passa. Muitas vezes se esconde, se disfarça, sempre à espreita, esperando o momento em que volta a ser vivida. Uma imagem, um som, um cheiro, uma palavra, qualquer coisa pode detonar a lembrança da dor. O corpo todo retoma a memória física da violência de gênero, do sexismo, que, pra mim, tornou-se explícito e concreto justamente a partir da construção do Câmara de Espelhos. Se antes eu tentava não ver as violências que sofria, depois do filme não havia mais como fugir delas.

Voltar para ele é resgatar um processo de violência, porque os filmes não só podem e devem nos colocar diante das violências cotidianas de uma sociedade colonial, patriarcal e racista. Eles também nos fazem vivê-las em sua própria construção, em seu próprio processo de feitura. Fazer um filme, como nos diz o professor Laecio Rodrigues, quando retoma Comolli, “implica investimento político e doses de violência (sedução, entrega e desconfiança seriam gestos inerentes a esta arte), mas também acolhimento, redescoberta de si no outro (e vice-versa) e abertura para o mundo” (2015, p. 152). Câmara de Espelhos é um filme que marca minha trajetória, tanto como ponto de partida de minha pesquisa sobre as imagens, quanto como redescoberta de mim no mundo. Saber-me mulher e tudo o que isso implica. Saber-me branca e tudo o que isso implica. Espelho invertido que nunca mostra exatamente o que somos, mas que carrega parte do que vemos e, portanto, nos ajuda a construir certa imagem possível de mundo e de nós mesmas/os/es.

A imagem que dispara o desejo de Câmara de Espelhos é simples: estou numa mesa de bar, rodeada de amigos e amigas, quando alguém conta uma piada machista e eu me vejo sorrindo, junto com outras mulheres na mesa. Quase como num jogo de espelhos, eu olho para as amigas e, no sorriso delas, vejo o meu próprio desconforto. Há algo no pacto do riso que não se sustenta, porque violenta. Afinal, por que estamos rindo? Com o tempo, vou entendendo que, para fazer parte de um mundo em que o homem branco é tido como o “sujeito universal”, com todos os privilégios que isso implica, sorrir de uma piada machista, sendo mulher, é uma tentativa de ser aceita nesse mundo, de fazer parte, como se não houvesse outra alternativa.

Na verdade, com o tempo, o filme vai me mostrando todas as vezes em que tentei me moldar ao mundo, violentando minha própria existência. Todas as vezes em que tentei me enquadrar num modus operandi que não me era natural, mas que me era imposto como modelo único. Ver a violência que nos cerca, no caso do machismo, é perceber-se cotidianamente em vivências de submissão, assédio, abuso, e isso é terrível. Quantas de nós fugimos dessa certeza?

O fato é que, para mim, essa mesa de bar transformou-se num desses momentos em que tudo se conecta e não conseguimos mais fingir que não vemos. É dessa imagem do bar que nasce a vontade de filmar a violência implícita nos discursos naturalizados do machismo. É a partir dela que começo a desenvolver o que viria a ser Câmara de Espelhos. Um filme que joga luz naquilo que tantas vezes passa despercebido em nosso cotidiano. Pensamentos, comportamentos e discursos extremamente violentos, que passam por nós como algo natural. Na época, eu iniciava meus estudos no que alguns teóricos do cinema e da imagem chamam de “filme-dispositivo”. O professor Cezar Migliorin, em “O Dispositivo Como Estratégia Narrativa”, nos explica:

O dispositivo é a introdução de linhas ativadoras em um universo escolhido. O criador recorta um espaço, um tempo, um tipo e/ou uma quantidade de atores e, a esse universo, acrescenta uma camada que forçará movimentos e conexões entre os atores (personagens, técnicos, clima, aparato técnico, geografia etc.). O dispositivo pressupõe duas linhas complementares: uma de extremo controle, regras, limites, recortes; e outra de absoluta abertura, dependente da ação de atores e de suas interconexões. (Migliorin, 2005)

Quase como um jogo, com suas regras e funcionamentos, mas aberto ao acaso, porque trabalhar com pessoas é contar com o imprevisível, o inesperado, a fenda na representação. O dispositivo como mecanismo capaz de acionar algo de real, “permitindo que o mundo venha a perfurar o filme, arejá-lo com a irrupção do impensado e do que é irredutível ao cálculo” (CAIXETA; GUIMARÃES, 2008. P .40). Dentro dessa perspectiva, começo a desenhar o dispositivo de Câmara de Espelhos, que se divide em quatro camadas: 1. A caixa – espaço físico onde o filme acontece. A ideia de caixa é uma forma de recortar o contexto social em que estamos inseridos, nos fazendo olhar para o que interessa, no caso do Câmara de Espelhos, os discursos naturalizados do machismo. 2. O material de arquivo – imagens que são apresentadas dentro da caixa para os personagens e que funcionam como disparadoras das interações entre eles. Todas as imagens foram pesquisadas pela professora Tatyane Guimarães Oliveira (UFPB) e tinham como foco a representação da mulher na mídia (novelas, publicidades, vlogs, matérias jornalísticas, filmes etc). 3. Os personagens – homens vindos de distintas classes sociais, idades, sexualidades e raças, que foram selecionados a partir de uma chamada pública – em alguns casos, também através de convites diretos. 4. Eu e minha relação com eles. Uma das regras que me impus durante as filmagens era de que eu não tivesse contato direto com os personagens, numa tentativa de manter certo distanciamento e, com isso, me relacionar com o material de forma menos contaminada – se é que isso é possível.

Na montagem, entendo a necessidade de construir um código de ética mais concreto e que me ajuda a olhar para eles. Principalmente, porque esses homens – os personagens do filme – não são a encarnação do machismo, mas o resultado de uma sociedade. Foi nas escolhas de montagem que essa relação ética se estabeleceu e, por isso, gostaria de detalhar resumidamente seus procedimentos. A primeira decisão que tomamos, eu e Joana Collier – montadora do filme –, foi de que iríamos selecionar “ilhas” de pensamento. Ou seja, não nos interessa cortar e colar frases violentas, como se viessem do nada, mas, justo pelo contrário, nos interessa perceber quando elas surgem naturalmente, dentro de um raciocínio que nasce de uma provocação e que morre por conta própria. O que queremos dar a ver é muito mais os momentos em que se estabelece uma relação de cumplicidade e de pacto entre eles, momentos em que a naturalização da violência nos discursos aparece espontaneamente, no meio de um raciocínio ou reação.

A violência atravessa o dispositivo, porque atravessa a vida e os personagens são reflexo desse mundo em que estamos inseridos. Outra decisão importante é a escolha dos planos. Evitamos ao máximo colocar as frases mais violentas em close, bem como decidimos ir para o plongée quando o discurso se aproxima de uma ideia de “sociedade” ou de “senso comum”. Tocar na violência, jogar luz sobre ela, tendo o documentário como ferramenta, exige ressignificações e a relação entre as partes é uma delas. Reconfigurar minha relação com os personagens a partir de uma ética de montagem não quer dizer que não se estabeleça um certo grau de violência do filme para com eles. Todavia, posso dizer que faz toda diferença olhar para o filme sabendo que as escolhas foram conscientes e que a questão não é fazer um filme sobre pessoas que gosto ou não gosto, mas, pelo contrário, fazer um filme que, através de seus personagens, com rostos e vidas próprias, seja capaz de nos fazer pensar sobre a sociedade e seu modus operandi patriarcal, colonial e racista.

Três anos depois das filmagens, no lançamento, quando apresentamos o filme para os personagens, um deles me disse algo como: “quando eu participei do filme, eu tinha 18 anos, morava com minha avó e reproduzia tudo que via a minha volta. Hoje, eu assumi minha opção sexual, entrei na universidade, e te digo que é muito difícil me ver nesse filme, mas, ao mesmo tempo, que bom que esse ‘cara’ ficou registrado, porque eu não quero nunca mais voltar a sê-lo”. Esse depoimento me fez perceber o cinema como abertura e transformação, o espelho como lugar de reflexão e reflexo. Ser para não mais ser. Uma caixa fechada, mal acabada, construção frágil de uma busca, de uma tentativa de criar rasgos e fendas em nós e no mundo. A violência estampada nos discursos do cotidiano, acionada por um dispositivo que nos faz olhar para quem somos.

Câmara de Espelhos é um filme que faz da violência sua matéria prima. Denunciá-la é o objetivo do jogo. Fazer ver, fazer pensar. E essa exposição tem seu preço, porque exibi-la significa abrir espaço para que ela, mais uma vez, aconteça. A imagem produzida acaba por violentar também aquele/a que a assiste. Durante as exibições do filme, os relatos se dividiam em dois aspectos: as mulheres feministas, que se sentiam violentadas pelos discursos reproduzidos e para as quais o filme resgatava dores; e as mulheres que ainda não se percebiam dentro da desigualdade de gênero e me diziam algo como “meu ouvido destampou”. Foram muitos os relatos de mulheres que me diziam como não estavam mais conseguindo fechar os olhos para a violência cotidiana do machismo. Falar de violência é, de certa forma, voltar a reproduzi-la e isso não é fácil. Ao atravessar o processo desse filme, entendi melhor meu corpo no mundo. Acessei dores antigas, ganhei novas dores também.

Das filmagens ao lançamento, passaram três anos e, durante esse tempo, rodei mais dois longas (Modo de Produção, 2017 e Mateus, 2019), ambos dentro da pesquisa sobre filme-dispositivo e sobre os quais poderia seguir construindo essa reflexão entre cinema e violência. No entanto, em 2018, filmo Agora e é com ele que escolho costurar, aqui, minhas palavras finais. Primeiro, porque com ele volto à caixa, depois porque é também um filme atravessado pela violência, mas, dessa vez, sob o signo de estilhaços e resistências. Se, em Câmara de Espelhos, a violência brota da tela, nos apontando o adoecimento; em Agora, a resistência surge como cura e enfrentamento. Flanar entre Câmara de Espelhos e Agora é uma maneira de pensar sobre as imagens que nos aprisionam e as que nos libertam. Para falar da violência cotidiana do machismo, tive que atravessá-la, torná-la evidente, apontá-la, exibi-la. Essa escolha não foi fácil, porque falar da violência é, mais uma vez, abrir espaço para ela, o que, de certa forma, nos aprisiona. Em Agora, acredito, apostamos na transcendência a partir dos corpos.

Por uma imagem que liberta

Estamos em 2018. Vivemos a eleição mais acirrada de que temos notícia na história do país. Disputas e sentimentos antagônicos constroem um panorama extremista. O presidente eleito, Jair Bolsonaro, é a representação de todo racismo, elitismo, misoginia e fundamentalismo religioso da sociedade brasileira. Uma semana depois das eleições, ainda imersa no sentimento de pânico e tristeza que tomou muitos corpos e mentes daqueles que se posicionaram contra Jair Bolsonaro, lembro-me do esforço que precisei fazer para levantar-me da cama. Naquele momento, esse gesto cotidiano, banal, exigia uma grande força emocional e foi durante esse movimento, nem antes, nem depois, que a ideia do filme se apresentou.

Entre a cama e o estar em pé, num gesto de levante, a ideia do filme surgiu como quem faz um download. Corpo e gesto como liberadores de uma ideia. Claro que o pensamento, as leituras, os sentimentos acerca dos desejos desse filme já estavam sendo gestados de uma forma abstrata e acumulativa em mim, mas foi o gesto do corpo, ressalto, que fez conectar tudo. Como se, no gesto, estivesse contida a imagem primeira. Como se a imagem se desprendesse do corpo, e não da mente. Mas, se as imagens vivem dentro de nós, colecionadores de imagens (AGAMBEN, 2012), não há de ser um mistério vê-las nascer de nossos corpos e gestos.

A imagem que se desprendeu de mim era simples: uma mulher, dentro de uma caixa, tentando me falar o que sentia usando seu corpo. A partir dessa imagem, entendi que precisava filmar aquele tempo histórico, dezembro de 2018, e os corpos em ressonância com ele. Um filme que coloca artistas a performarem com seus corpos e existências o que viviam e sentiam naquele momento. Agora, portanto, como um filme que nasce da necessidade profunda de registrar corpos que resistem historicamente às opressões de um mundo violento, corpos que disseram ‘não’ ao projeto vencedor nessas eleições brasileiras de 2018. Corpos que, sobretudo, se lançam na experiência do tempo presente, abrindo-se para uma conexão direta com tempos históricos internos e externos, numa circularidade que faz sobreviver quem somos. A imagem e o cinema como espaço de emancipação do olhar e do corpo. Assim como em Câmara de Espelhos, o dispositivo de Agora também se constrói a partir de quatro elementos. Alguns, como a caixa, se repetem, mas avançam em intenção e proposta.

  1. Os corpos. O primeiro elemento do dispositivo é a escolha das personagens. Em cada conversa, cada encontro com amigues e equipe, enquanto maturava a ideia, crescia a vontade de me lançar nesse abismo da não-palavra e, assim, o perfil das personagens foi surgindo. Entendi que precisava trabalhar com artistas ativistas, de diversas áreas da arte. Música, dança, artes plásticas, teatro. Pessoas que têm o corpo como instrumento de trabalho e a arte como ferramenta de luta – não panfletária, mas existencial. Junto com Bruna Leite, produtora de elenco, fizemos um levantamento de vários e várias artistas do Recife tendo em vista esse critério político e chegamos ao número de 13 personagens, que, por sorte, aceitaram o convite.
  2. A caixa. Toda a cena acontece dentro, literalmente, de uma caixa esvaziada, que deve ser iluminada adequadamente para receber as personagens. Em Câmara de Espelhos, havia uma sala de estar, com sofá e TV; aqui, intensifico essa materialidade, porque a esvazio completamente. A Caixa, na verdade, começa a me apresentar a possibilidade de uma imagem com características que muito me interessam. A primeira delas diz respeito à materialidade e simulacro. Pensar a imagem como uma caixa que recorta o mundo e fazer da caixa algo concreto, é apontar mais claramente seu simulacro, sua representação, seu estado de criação, construção específica de alguém que olha, artifício de representação do real. A caixa exacerba e explicita essa noção. A segunda característica diz respeito ao nascimento de uma performatividade também mais explícita. A caixa, como percebo, coloca as personagens num estado de consciência permanente da filmagem, e, portanto, de um espectador. A imagem dá sinais conscientes de sua simulação. O dispositivo reforça o instante e coloca o espectador diante de corpos em presença. Não há uma dramaturgia pré-estabelecida, nem pela direção, nem pelos artistas/personagens. São corpos em ação direta, em resposta a uma provocação determinada, criando uma experiência imediata baseada na relação entre tempo, espaço e corpo. A terceira característica que identifico para pensar a imagem que nasce da caixa diz respeito à espacialidade da imagem. Ou um não-lugar. Lugar heterotópico: fora de todos os lugares, mas ainda assim localizável. “Em geral, a heterotopia tem como regra justapor em um lugar vários espaços que, normalmente, seriam ou deveriam ser incompatíveis” (FOUCAULT, 2013. p.24). Para mim, o espaço da Caixa é o contra-espaço, recortando os personagens do “mundo real”, imagem vazia de contexto, mas que se preenche de matéria humana, levando cada espectador a uma construção pessoal e única desse espaço heterotópico. Preenchimento, deslocamento e fruição.

A caixa de Câmara de Espelhos é impenetrável: nem eu nem as câmeras entramos, colocando o espectador também fora dela, como observadores de uma cena distante. Os personagens são inseridos na caixa como corpos que reproduzem movimentos, performances e discursos normatizados pela sociedade, e é justamente sobre a normatização e o aprisionamento dos corpos que o filme nos fala. Em Agora, essa caixa não é impenetrável, estamos dentro dela, junto com as personagens, e, mais do que isso, estamos falando de corpos em potência, daquilo que não se controla, nem aprisiona. Corpos que, de alguma maneira, ensaiam escapar a uma ideia de normatização biopolítica. Dentro dessa caixa simbólica que é a sociedade – onde estamos todos imersos -, o filme aponta para corpos em devir, corpos em deslize, corpos que escapam ao aprisionamento e que se abrem para a busca de uma outra existência.

  1. A provocação e a pausa. Como havia um desejo de registrar os corpos reagindo àquele tempo histórico, ou seja, os dias em que vivemos o limbo entre as eleições e a posse do novo presidente, minha provocação para todas as personagens era a mesma: “diante desse tempo histórico, conectado com essa caixa, essas luzes, esse lugar em que estamos, sabendo que o chão que pisamos é também o chão de um país, que carrega nossa história, como seu corpo se sente? Onde ele está? E como quer se colocar?” Diante dessa provocação, as personagens se deixavam levar pelo próprio corpo, construindo um caminho de potência e presença. A provocação funcionava como disparador. Importante ressaltar que as respostas do corpo eram extremamente singulares, e que a palavra também apareceu como resposta, mas como uma espécie de continuidade do corpo, e não como discurso racionalizado. Ainda que corpo e palavra sejam dimensões autônomas, a palavra reside no corpo e quando elas nascem dele, “grudam tão fielmente à realidade do corpo, que são capazes de, ao mesmo tempo voar, dançar, livres do corpo” (UNO, Kuniichi. 2018. p.81). Junto com a vontade de “ouvir” esses corpos a partir dessa provocação, existia também um desejo de pausar seus movimentos, de provocar a pausa dos gestos em potência. Durante as filmagens, a sensação era de que esses congelamentos funcionavam não só como denúncia do dispositivo que é o próprio cinema, simulacro do real, – com equipe e câmera intermediando aqueles encontros – mas também como possibilidade de congelar o gesto possível do presente. Ou, “se não podemos parar o trem da história, que possamos congelar o gesto possível do agora, o corpo que responde e que (re)existe no momento presente” (trecho do diário de filmagem). Na pausa do gesto possível, a câmera se aproxima até este corpo, registrando a “estátua” que respira, que segura a energia do gesto em pausa.
  2. A preparação do elenco. Tendo a Caixa como materialidade assumida, delimitadora espacial e potencializadora de performances; tendo as personagens definidas; e a provocação junto com a pausa como disparo; restava pensar como construir um ambiente receptivo, que facilitasse o encontro das personagens com o próprio corpo e com a equipe. É então que surge o quarto elemento do dispositivo fílmico: a preparação do elenco. Certamente, o momento crucial de todo o processo, e que foi conduzido por Lívia Falcão e Silvia Góes, parceiras e amigas de longa data. Adotando ferramentas da biodança, da constelação familiar, da conversa, do trabalho físico e do olhar para dentro, as preparadoras abriam espaço nas personagens para que a conexão com o tempo presente, a conexão com a presença naquela caixa, diante daquela equipe, se desse o mais intensamente possível. O corpo como potência de criação e libertação, ou como caminho para outras compreensões sobre nós e sobre o mundo.

Dispositivo construído, posso dizer que foram cinco dias de intensos encontros. Diferente de Câmara de Espelhos, que começo o filme bem e termino doente; em Agora, começo o filme doente – adoecida de um desconforto, mal-estar e inadequação, diante de todo o contexto que vivíamos – e termino curada, libertada, fortalecida. Digo isso, porque, para mim, esse é um dado que nos dá a dimensão do que chamamos processos fílmicos. Como realizadora, não posso dissociar os processos dos resultados, porque acredito que um filme é atravessado por tudo que se constrói em seu entorno. O adoecimento com Câmara de Espelhos me fortaleceu, a cura com Agora me devolveu a crença na imagem. Cada filme é um mundo, com seus desafios, desejos, e buscas, mas não acredito que nenhum se encerre em si.

Para mim, cada filme é como um passo numa caminhada, que vamos trilhando enquanto a própria vida se apresenta. Todos incompletos e em devir, como nós. Agora é um filme que parte de uma violência coletiva – a eleição de Bolsonaro – compartilhada  por corpos diversos, mas que a transcende a partir de uma experiência de encontro e resistência. O corpo como instrumento de cura, compartilhamento, receptáculo de memória, história pessoal e coletiva. O filme como espaço de catarse, disparador do real que nos habita, possibilidade de reinvenção de mundos e libertação. A imagem como gesto radical, que tenta acionar outros portais de conexão com quem o assiste. Um pedido para ver não só com os olhos, mas com o corpo inteiro.

A violência atravessa o filme a partir de sensações e estados que são acionados pelas personagens, na medida em que elas mergulham em seus próprios corpos, memórias e histórias, mas também é a partir desses mesmos corpos que voamos e apontamos para um estado de existência, força e leveza. Em Câmara de Espelhos, há o desejo de fazer brotar a violência, trazê-la à tona em seu estado naturalizado de discursos cotidianos. Em Agora, há um desejo de partir da violência coletiva para uma reinvenção de quem somos ou podemos ser, um estado de transcendência pelo corpo.

Dois filmes que dialogam em sentidos antagônicos, mas, de certa forma, complementares. É com eles que sigo pesquisando e buscando um cinema pela “superação da anestesia da vulnerabilidade ao outro” (ROLNIK, 2006. p. 03). Na verdade, ambos me fazem pensar na importância de ter a vulnerabilidade como condição para que o Outro deixe de ser “objeto de projeção de imagens pré-estabelecidas e possa se tornar uma presença viva, com a qual construímos nossos territórios de existência e os contornos cambiantes de nossa subjetividade” (ROLNIK, 2006. p.03).

É com cada personagem que me sinto outra. Mas não porque eles afirmam meus sistemas de predicados e crenças, justo o contrário, porque me desamparam, acionam-me uma posição de despossessão de mim e, justamente nesses contornos, tenho alguma experiência de mim. O encontro realizando uma transformação da qual não há retorno. Num caminho contrário à identificação quase hipnótica às visibilidades do espetáculo, pensar a imagem como possibilidade de fundar novas formas de expressividade para as sensações e o encontro com o Outro. A arte como contágio e transformação. Caminho real para a emancipação do pensamento, do olhar e do corpo que somos.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Ninfas. Tradução: Renato Ambrosio. Editora Hedra: São Paulo. 2012.

CAIXETA, Rubens. GUIMARÃES, César. Pela distinção entre ficção e documentário, provisoriamente. In “Ver e Poder”, COMOLLI, Jean-Louis. Editora UFMG: 2008

FOULCAULT, Michel. O corpo utópico, as heterotopias. N-1 Edições: São Paulo, 2013.

MIGLIORIN, Cezar. O dispositivo como estratégia narrativa. Narrativas midiáticas contemporâneas. Livro da XIV Compós: Porto Alegre. 2005.

MONDZAIN, José-Marie. A imagem pode matar? Tradução: Suzana Mouzinho. Nova Vega Editora: Lisboa. 2a edição. 2017

ROLNIK, Suely. Geopolítica da Cafetinagem. Núcleo de Estudos da Subjetividade, PUC: São Paulo. 2006
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UNO, Kuniichi. Hijikata Tatsumi – pensar um corpo esgotado. Tradução: Christine Greiner e Ernesto Filho. N-1 Edições: São Paulo. 2018.

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