Nos curtas que integram a curadoria da Mostra Temática Vertentes de Criação, corpos negros tomam a invenção como potência discursiva para tecer estéticas que se unem pela ausência de amarras. Nesse movimento, tecem dramaturgias que tomam o corpo como dispositivo para construir universos que se fortalecem a partir dos conflitos e harmonias entre os planos.
“O teu Brasil acabou e o meu nunca existiu. Nunca existiu. Nunca existiu. Nunca!”. São as palavras que ecoam após o fim da sessão de ‘República’, de Grace Passô. A diretora compõe um filme que reverbera imaginários distópicos que se tornaram ainda mais constantes com o surgimento da pandemia. Na construção da tensão e desconstrução do conflito central, reside um exercício de suspense que vê na fantasia a única possibilidade de redenção. Em um filme que se prende e se solta entre o factual e o fantasioso, a presença da figura do duplo como ponto de tensão e comentário social lembra alguns elementos usados por Jordan Peele em ‘Nós’, mas aqui o mistério permanece inacessível até as palavras finais que encerram o curta.
Em ‘Uma noite sem lua’, o corpo aparece como lugar, como duplicidade do espaço. Por vezes, como uma folha em branco em que se pode escrever, em outros assume o deslocamento como possibilidade de transcendência. A realizadora-performer Castiel Vitorino assume o ensaio como experimento da própria identidade, em que o ser travesti afirma seu lugar de deslocamento. “E se eu abandonasse a linearidade e assumisse a encruzilhada?”, pergunta-se em determinado momento a autora. Do desejo de estar em trânsito, torna-se o trânsito.
Em ‘Um filme de domingo’, Lincoln Péricles cria um espaço em que a reflexividade do ensaio também se experimenta, mas atravessado por uma ludicidade que ilumina os tons mais duros da vida adulta. Acompanhamos o dia a dia de uma família do ponto de vista de Maria Eduarda, uma criança que brinca com a câmera da mãe emulando os trejeitos dos youtubers e influenciadores digitais. Enquanto isso, a dureza das vivências de uma família periférica se sustenta nas interações entre sua mãe e seu tio, que se dividem entre proteger a imaginação da criança e alertá-la sobre os percalços que irá atravessar. Por mais que essas interações entre os adultos não carreguem a mesma espontaneidade que a presença de Maria Eduarda traz, elas funcionam justamente para nos provocar esse estranhamento.