Críticas | A morte branca do feiticeiro negro

Críticas | A morte branca do feiticeiro negro

Entre o feitiço e a palavra escrita

Por Maria Sucar (Natal | RN)

‘[…] até que encontre no coro das vozes a plena e justa liberdade’

Lembro da primeira vez que tive contato com o filme. Era um festival que não lembro qual. Li o nome, vi a imagem do homem negro em preto e branco com aquele olhar fixo e intenso para a câmera, mas não o assisti naquele momento. Tinha recém assistido Sertânia de Geraldo Sarno e por algum tempo pensei que talvez estivessem próximas ambas as obras. Passei um tempo pensando que se tratava de uma ficção e sei que há quem diga que no cinema tudo é ficção, mas aqui eu desconsidero esse dizer. Não há recurso sonoro, narrativo ou imagético que torne a carta de suicídio de um homem preto escravizado em nada além de uma horrível realidade histórica repassada em outro formato.

Quando o filme se inicia, o som o acompanha e a tela está preta. Ouço atenta aquela trilha que parece me antecipar uma tragédia e a ansiedade é inevitável desde o primeiro momento. É ruidoso, contínuo, e a cada camada adicionada, começo a pensar que o inferno, caso exista, tem um som muito próximo àquele. Se constrói ali uma trilha que se assemelha às de filmes de terror, mais precisamente aqueles que envolvem espíritos, fantasmas, demônios e rituais. Os elementos visuais acompanham essa estrutura espectral, com ruínas, tons terrosos, paisagens, fotografia escura e imagens de arquivo. Sinto que nelas se mistura uma sensação de saudosismo, uma angústia, uma ansiedade, a “nostalgia mortal” que é citada no início do filme e agora sinto que a compreendo.

Timóteo passa o tempo todo falando comigo. Vejo nele o sentimento de culpa, pois seguidamente pede perdão. E eu sinto culpa por ele tanto se desculpar. Sinto angústia por ele sentir culpa. Arrisco dizer que é sim um filme de terror que ali acontece. Existem sim fantasmas, existe ali um ritual, mas não existe ficção. Não é Timóteo que me assombra, é o que o matou e que ele aprisionou dentro de sua carta.

Antes de desencantar-se, Timóteo inicia o que pode ter sido seu último feitiço: aprisiona em sua escrita uma parcela da dor colonial.  Ao escrever, com suas próprias palavras, documentou não só sua dor, mas também a dor do corpo preto na história. Manifestou a face da morte branca, da morte que não lhe foi dada o direito, por temer que iria ao inferno, por ser um homem preto escravizado que “traria prejuízo” às pessoas que o colocaram nessa posição caso conseguisse concretizar seu desejo, resultando em três tentativas falhas. Timóteo não podia morrer, mas também não podia viver. Sabia que existia quem vivesse sem ter desgostos, mas também sabia que sua vida aborrecida só deixaria de ser, encerrando sua existência. Sua carta é seu feitiço e é na palavra escrita que está guardada a mágica. Sua sepultura é sabedora, pois ali se guarda mais um pedaço dessa história que se repete, se modifica e tarda a tornar-se apenas história. Que nós não esqueçamos Timóteo.

Fissuras no arquivo da escravidão e no tempo

Por Paulo Pontes (Recife | PE)

Os arquivos da escravidão são fundados pela violência. São, em grande parte, relatórios contábeis, inventários de propriedade, sentenças de morte ou descrições de torturas, que assumem a forma de narrativas cotidianas daquele contexto. Documentos cujas violências representam e reproduzem. E, a partir deles, concebemos e conhecemos as histórias que escrevem a História. Por isso, é preciso tencionar os métodos e as limitações dos registros oficiais, sobretudo, para desestabilizar a sobredeterminação do olhar branco. Então, como agenciar esse material em direção a outro modo de conhecer e escrever a história dos sujeitos escravizados? Ou como usar arquivos sem perpetrar mais violência no ato mesmo da narração?

A morte branca do feiticeiro negro (dir. Rodrigo Ribeiro), nesse sentido, nosapontam pistas para caminhos possíveis. Durante dez minutos, somos guiados na leitura da carta de suicídio de Timóteo, negro escravizado e falecido em 1861. As imagens anácronas e a sonoplastia constroem a áurea daquele universo: uma nostalgia mortal chamada banzo. A carta, por sua vez, é inseparável do jogo de desumanização responsável pelo desejo do suicídio. Entretanto, ao explorar as fissuras do arquivo histórico, Rodrigo parece descentralizar a narrativa dos mecanismos que baniram Timóteo da vida, e investigar os fragmentos desse sujeito nas suas palavras.

O exercício de pensar o impossível, de resgatar as vidas das pessoas escravizadas para fora dos arranjos coloniais que os registraram, é um ato de performar os limites da história. Não podemos perceber essa carta como algo que habita o passado, simplesmente. As palavras de Timóteo ao reivindicar sua vida para si, inclusive para aceitar a morte, trás para a superfície do discurso algo apagado pela prática do poder. Nesse movimento, a sua existência não pertence mais a um tempo exclusivo, pois suas palavras a suspenderam “no surdo vazio do tempo”. Talvez, seja esse seu grande feitiço. Assim, Timóteo estar, também, nas lavouras de café do século XX, no pelourinho do século XXI, na mulher negra que assiste ao por do sol em Salvador. Sua existência faz parte de um projeto maior e incompleto de liberdade.

As últimas imagens do filme são detalhes de uma fotografia que registra uma colheita de café em 1882. Na aproximação, nos deparamos com pessoas negras trabalhando na plantação. Sobrevive na paisagem, quase como um acidente do tempo da fotografia, os olhares desses sujeitos, que nos comunicam não somente um testemunho, mas, também, uma profecia de liberdade ainda em devir. Essas feições se revelam capazes de transpor o horizonte das construções escravocratas e nos interpelar hoje, como os próprios destinatários da carta e do olhar: qual é a minha parte nesse latifúndio colonial? A morte branca do feiticeiro negra, dessa forma, opera temporalmente essas sobrevivências e trabalha o caráter contínuo, inacabado e provisório da relação do passado com o presente e futuro.

Sabedorias do túmulo

Por Rebeca Nobre (Rio de Janeiro | RJ)

Monólogo. Sem diálogo. Sem narração. Sem palavras audíveis. Sem cor a maior parte do tempo e uma trilha sonora incomoda. Elementos que em um julgamento cru, parece a receita do fracasso. Porém, Rodrigo Ribeiro, em A morte branca do feiticeiro negro, mostra que uma escolha de imagens mesclada a uma carta de suicídio de um negro escravizado.

Com frases impactantes junto com fundo sonoro que traz agonia e imagens estáticas e em movimento do tempo da escravidão, conseguimos sentir a dor da história que é passada para nós. Uma história real e que nos faz querer que fosse ficção.

“Só é lento para quem tem Amor à vida”. A palavra banzo nunca fez tanto sentido. O telespectador sente a tristeza de um homem que escolhe a morte sofrida de gradual a viver naquela infeliz vida. Percebemos que mesmo na dor encontra-se sabedoria. Timóteo pensava no futuro, nas próximas gerações ao ponto de dizer que a sabedoria está no túmulo. Isso é passado para nós de forma dolorida de assistir, mas importante de se lembrar para não acontecer novamente. O final com imagens coloridas mostrando Salvador nos dias atuais não é por acaso. A linha linear das imagens, desde o senhor de engenho até casa grandes e as lavouras em comparação ao final que não é mais preto e branco, faz sentido. Mas deixa o questionamento: colorido para dar esperança de estarmos em dias melhores ou um “a escravidão realmente acabou?”.

Deixe uma resposta