Um abismo de espelhos
Em meio ao período de isolamento social, o contato por meio de telas precisou se sobrepor ao contato físico, o que, por sua vez, talvez tenha avançado em anos a presença, os dilemas e as soluções promovidas pelas tecnologias digitais. Nesse trânsito, o excesso das imagens causou uma diversidade de sintomas: por um lado, alimentou a sede de informação e, por outro lado, as ansiedades, crises e o desejo por silêncio.
Dentre os curtas que integraram a programação da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, filmes recentemente produzidos durante esse período terminaram compondo uma categoria intitulada ‘filmes de pandemia’. Ou seja, o período de isolamento se tornou um terreno ‘fértil’ para construir narrativas, um trauma coletivo de proporções globais que, inevitavelmente, seria capitalizado por meio de histórias que promovessem identificação – em filmes, propagandas etc..
Seria injusto e limitado afirmar que os ‘filmes de pandemia’ atendem somente aos aspectos de ordem capitalista, mas seria ingênuo defender que todas as narrativas buscam um processo de elaboração emociona e sobrevivência psíquica diante do trauma. Acredito, inclusive, que, para muitos artistas com condições menos favorecidos, explorar a narrativa pandêmica se tornou válvula de escape ao mesmo tempo em que se torna possibilidade de sustentabilidade.
Diante desse contexto, muitas dessas narrativas terminam incorporando recorrências temáticas e estilísticas que, com uma presença cada vez maior de obras audiovisuais nesse espectro, se tornaram comuns. Dentre algumas dessas características, filmes realizados em uma única locação; personagens confinados; imagens externas filmadas a partir de janelas, portas que exibiam espaços urbanos esvaziados; filmes produzidos a partir de plataformas de comunicação (Zoom, Google Meet, Face Time, Screenlife etc.).
Dentre esse processo, também se tornaram recorrentes filmes-ensaio com retomada de material de arquivo (pessoal e/ou público) que tomam o conflito entre as imagens do mundo histórico por aquelas que podem ser produzidas nesse contexto. ‘Quase me fizeram acreditar que eu não existia’ (2020, Arthur Alfaia) e ‘#’ (2020, Caio Sales) foram alguns dos filmes que encontrei em festivais de cinema que trabalharam a partir desses materiais a partir de chaves distintas.
Na Mostra de Cinema de Tiradentes, alguns trabalhos caminham nesse sentido: Drama Queen, de Gabriela Luiza; e Minha bateria está fraca e está ficando tarde, de Rubiane Maia e Tom Nóbrega. No filme de Gabriela, a diretora se coloca em cena em um ensaio de si que se forma como um amálgama entre o deboche e a sobriedade, elementos fundamentais que integraram o processo de elaboração do processo de isolamento no contexto brasileiro. A narrativa do curta explora as (in)congruências entre esses estados de espírito, compreendendo que o riso de si e da situação terminam vem se tornando uma das válvulas de escape necessárias para a sobrevivência.
Na velocidade das conexões digitais, ao mesmo tempo, vemos uma notícia bombástica em torno das mortes provocadas pela COVID19 e, logo em seguida, um tweet satiriza um acontecimento em uma live ou em um curso online. A aparente dicotomia ou conflito entre essas narrativas se tornam o trunfo mais potente do curta de Gabriela, pois além de não negar o riso como parte integrante do processo de sobrevivência, compreende que ele coabita a experiência do trauma.
Ao mesmo tempo, o filme de Rubiane Maia e Tom Nóbrega explora chaves de leitura em torno de uma sensação de exílio atravessada ao contexto de isolamento. Enquanto a a maioria dos relatos com que entramos em contato durante a pandemia abordava a impossibilidade de ir, Minha bateria está fraca e está ficando tarde aborda a impossibilidade de voltar. Rubiane Maia estava na Inglaterra, e Tom Nobrega, na Amazônia peruana, e ambos precisaram cancelar suas viagens planejadas para o Brasil.
A partir das imagens de notícias do mundo todo e capturas de tela do Youtube de personalidades como Emidida, Maya Angelou, Laerte Coutinho, Jair Bolsonaro e Ailton Krenak, os cineastas buscam construir uma memória do presente.
Na virtualidade do encontro, as cartas instantâneas entre os dois amigos exploram uma ausência atravessada pelo excesso. A quantidade numerosa de imagens, de informação, de sensações explora a sensação de uma infinitude de conteúdo a ser processado, provocando ansiedade e incômodo. Nesse período, parece que se fala muito, mas se tem pouco a dizer. O cérebro parecia não processar cada vez mais a quantidade de imagens, telas, palavras, sons com que, repentinamente, precisávamos ter contato para nos sentir afetados e informados.
Assistir a esses ‘filmes de pandemia’ com a mesma tela de notebook com que assisti cursos online, festivais, lives, videochamadas e com que elaboro essas linhas me parece criar uma dobra sobre esses filmes. Por meio de filmes que tomam a tela como principal forma de acesso a seus universos, essa janela funciona como um abismo de espelhos que provoca uma forma de contato entre nós, seja pela via do deboche ou do desejo de criar contato.