Estigmas do cinema contemporâneo
Por Lucília D’Araújo (Santos | SP)
A sequência a qual vejo[MGSL1] através dessa mesma tela espelhada por qual escrevo se desvela em recortes de uma mesma fotografia. Quadro a quadro, ficamos mais próximos do centro da imagem, o que me revela uma memória bem detalhista de certo modo. É como se o narrador tivesse memorizado até as folhas daquele fragmento de árvore que aparece no primeiro plano. Mas não é assim que o curta começa, na verdade a tela fica preta por uns instantes, enquanto [MGSL2] o narrador menciona um crítico desconhecido que avalia, de forma negativa, “o fenômeno do documentário em primeira pessoa”[MGSL3] . Por que será que a estética ensaística fica sob tantos juízos negativos? Curioso, no mínimo. Quem sabe não é nem sobre isso que o narrador vai continuar falando, então essa pulga eu deixo para[MGSL4] caçar depois.
O assunto vem seco e direto tal qual a montagem usada pelo diretor. É um conto sobre o abuso. Uma criança sequencialmente estuprada por (quase) todos os homens que, mais tarde, aparecem com os rostos queimados nessa fotografia. Não tem transição, não tem aviso prévio, nem pista de que o quadro vai mudar… O próximo recorte da fotografia vem subitamente e apoia as próximas palavras do narrador. Me impressiona como uma voz vazia de emoções[MGSL5] pode contar um causo ácido, complicado de digerir, e mesmo assim causar esse incômodo em quem ouve. O causo por si só carrega essa responsabilidade de dar nó na garganta, né?
É uma angústia inexplicável. Raiva. Ódio. Seguidos pela desconfiança, o medo, a pena, e a compaixão. O narrador conta que um colega costuma relativizar casos de abuso infantil. Isso me traz muita raiva, sabe? Só que a vítima prefere ignorar, ele foi vencido pelo cansaço e se silencia. É este o peso de uma infância roubada; da inocência perdida; a desesperança logo cedo, provocada em quem ouve esse tipo de relato. É inimaginável o que sente a vítima. É a única pessoa com propriedade pra contar essa história. A história dele. Até que é revelado de fato o rosto daquela criança na foto, o único rosto não danificado ou censurado na imagem. O passeio pelos recortes de uma mesma imagem chega ao fim.
É quando o roteiro chega nessa parte – da reflexão pós-relato [MGSL6] – que me dou conta do que realmente se trata a obra de Felipe Andrade Silva. Enquanto o narrador desenrola sobre a tentativa de contar uma história que só a ele cabe contar, a tela preta reflete minha face atônita com tamanha complexidade desenvolvida em poucos cinco minutos. “É porque não tem outra pessoa que pode contar a minha história”, foi o que ele disse no começo do filme. A perguntinha sagaz que decidi deixar de lado é, na verdade, a reflexão central que meu espírito enxerga no curta. Toda aquela discussão de mesa de bar a respeito do estigma construído sobre a estética ensaística vem à tona. Uma discussão que considero importante ser carregada da mesa de plástico desbotada para os auditórios mofados da academia. Minha rinite alérgica que lute.
Chego ao parágrafo em que entro em conflito interno com a proposta desse texto. Como posso escrever sobre a relação do dispositivo com a primeira pessoa na estética ensaística me baseando em um curta que acabou de relatar um abuso sexual infantil? Qual é o texto que só eu poderia escrever? Parece até que o narrador me ouviu e usou sua história como conselho, do mesmo modo que outro amigo do autor fez com ele. Parece que o jogo virou, não é mesmo?
A obra agora toma forma de testemunho perante as questões mais filosóficas que, a este ponto, já pagam aluguel em minha mente e me vejo no mesmo movimento do autor, ensaiando uma crítica ao ensaio. Daqui para [MGSL7] frente deixo só um esboço para uma discussão mais técnica, que pode me render algumas páginas. Primeiro, investigo o que é um ensaio; depois, o papel do autor nessa estética e então pensar que os dispositivos usados pra realizar uma obra podem ou não estar em primeira pessoa para conseguir se relacionar com a obra em si.
Realmente, o ensaio é uma estética contemporânea – tanto por acontecer na fração temporal em que também existo, penso e escrevo, quanto por elaborar a construção e explorar a forma do que está no futuro do presente. Como escreverei sobre isso, só esse texto me dirá. Antes ele do que eu.
“Só quem pode contar essa história sou eu, mas não consegui. Talvez eu tenha conseguido, mas quem contou não fui eu, foi o filme. Um filme em primeira pessoa. Mas que pessoa é essa? É um dispositivo […] antes ele do que eu.” (CINEMA Contemporâneo. Direção de Felipe Andrade Silva, 2021. 5min3s.)
Esta aqui não vai ser uma carta para o Felipe
Por Luiz Fernando Rodolfo (Porto Alegre | RS)
“amigo, espero que esteja bem. eu ando meio estranho, é assim que fico sempre que tento escrever alguma coisa e essa coisa não sai. e é por isso que te escrevo esta carta: devido a minha fraqueza e incapacidade em rascunhar palavras em um tom impessoal e distanciado acerca de seu filme, cinema contemporâneo” Rubens Fabrício Anzolin*
Desculpa, meu, vou falar muito de ti aqui e prometo fazer isso com todo meu carinho e respeito. Mas esse texto pretende ser um ensaio crítico sobre “Cinema Contemporâneo”. Eu falando sobre como o filme bateu em mim e me revirou de jeitos que não esperava. Sei nem bem o que vou manter, o que vão ver, o que vou guardar pra mim mesmo, mas de qualquer jeito esse filme tá me inspirando esse gesto. Vir aqui e lidar com esse impacto, botar algo pra fora.
A primeira vez que vi foi num dia em que ele estava disponível numa mostra online. Vinha há tempos ouvindo esse nome aqui e ali e nisso resolvi aproveitar os últimos minutos em que estaria disponível pra eu assistir, sem saber nada do que viria. Eu tava de noite sozinho na sala e fiquei bem baqueado com a história. Normal, eu acho. Tem que ser muito insensível para não ficar mexido com esse filme, né?! Só que, sei lá, ele chegava em cantos bem fundos de mim, de modo que quando acabou só consegui ficar parado, engasgado, meio chorando em seco. Sexualidade infantil me é um tema muito difícil.
Me relacionei com o filme porque minha vida atravessa histórias familiares, que me acompanham desde muito tempo, de modo semelhante ao que vemos no filme, presa em foto. Queria ter essa capacidade de contar a minha história. Pra mim mesmo que fosse, estruturar direito alguma coisa. Queria conseguir fazer uma obra bonita assim, bem pensada, trabalhada, entender até onde isso me afetou, até onde minhas experiências acabam e começam a se misturar e moldar outras. Como isso faz parte de quem sou. Acho que não é algo que se vá ter bem uma resposta e nem acho que o filme tenta isso, mas o ponto é que me sinto preso nas fotos também e me tocou muito ver o Felipe se permitindo escapar um pouquinho daquela, pra prender ela no filme.
Fui pego de surpresa, mas também foi meio que isso. Deitei logo depois com a cabeça a milhão e acordei de manhã pensando no café. Eu andava ocupado com outras coisas, acho que segui meio no modo automático, sabe. Acho que de tocar em lugares tão íntimos e delicados e ter me pegado tão de repente, fui levando meu tempo pra parar pra pensar e entender melhor o quanto o filme tinha me afetado. Só que aí ele já tinha ficado, já tinha se associado a mim e encontrado fissuras onde se acomodou, como que pra eu poder ir me reencontrando com os cantinhos de foto engavetados na cabeça.
De início, não reparei muito em linguagens ou nada do tipo, confesso. Essa primeira foi uma das experiências (senão a) mais irracionais, sensíveis e inconscientes que tive com o cinema. Naqueles cinco minutos e um pouquinho fiquei só entregue, sem conseguir fugir disso, sem olhar como estudante de cinema. Essa duração é muito extensa, dos curtas mais alongados que cinco minutos podiam caber. Enquanto a gente tá ali a temporalidade é uma questão lenta, dolorosa, indigesta. Nisso fiquei pregado aos sentimentos e sensações que vinham daquilo que eu via e ouvia, só reagindo enquanto pessoa diante desse dispositivo, que dispara em cada um muitas coisas. Entendo que todo filme funciona assim, mas esse parece que eleva essas questões a um outro patamar.
Demorei um tempo com ele meio em off na minha cabeça. Volta e meia, lembrava dele meio do nada, durante o café ou algo parecido, e ficava refletindo um pouco. Na primeira oportunidade que tive, vi de novo e aproveitei pra baixar um mp3 do link onde ele estava disponível no Youtube. Até então eu era uma pessoa de poucos choros, mas nessa segunda vez que assisti eu chorei e depois disso passei a marejar os olhos meio do nada assim às vezes. Passei a sentir necessário dar uma atenção a mim e ao porquê dele mexer assim comigo, e nisso escrevi uns poucos parágrafos do que viria a se tornar esse texto. Agora que eu tinha acesso quando quisesse, sentia ser necessário voltar a ele, por mais que me fosse difícil fazer isso. Acho curioso como depois de ter visto tantas vezes sigo descobrindo coisas que não percebia. Na minha última vez reparei em alguns passarinhos que cantam muito de fundo em alguns momentos e notar que isso provocou mais lágrimas.
Só sei que segui assistindo volta e meia. Passei a olhar mais atentamente a forma na qual o relato foi feito e acho esse gesto de relatar um dos mais fortes que o filme faz. É de uma sinceridade e confiança com o espectador, que nos coloca nesse estado de alteridade onde a gente se enxerga no outro e se entende enquanto gente. O jeito que é contado como aquela foto toca no íntimo acaba evocando experiências individuais muito particulares em cada um e pra mim isso foi perturbador e lindo.
A partir daí passei a entender melhor o potencial de manipular os registros, transformar eles, transgredir seus significados. Apesar de aparentar uma simplicidade, não vejo nada de simples ali. Pra mim é tudo muito complexo e inesgotável. Para além de todos elementos cinematográficos que o filme traz em questão de matéria, de tudo que realmente vimos e ouvimos nele, ele é muito construído a partir do que não tá ali. Por trás daquela narração clara, daquela voz macia e da interpretação sensível, escuto vários gritos, vários choros, várias músicas, várias palavras que não tão ali, vários pensamentos não ditos. Para além de cada pedaço de foto que o filme traz, toda cortada, decupada e reenquadrada, cada imagem destroçada que nós vemos, me vêm muitas lembranças igualmente destroçadas. Algumas até minhas e essas são as que mais me mexem, mas a maioria de outras pessoas. De muita gente que não conheço e de gente que até devo conhecer, mas não sei dessas histórias.
Admiro tua coragem, Felipe. Você lidou com isso de uma maneira que achei muito bonita e que eu sinto não conseguir. Não consigo ter tua frontalidade ainda, essa franqueza com a própria história, essa sutileza que arrebata na forma de construir seu curta, mas te admiro e muito. Não sei se consegui articular muito bem ideias tratando da linguagem e minha experiência com o filme, mas nem ligo. Ainda que ache que isso tudo tá aí, não tô tentando dar conta de nada com esse texto para além de tá satisfeito. Muita coisa vai faltar, muita coisa segue entalada na garganta e quero um dia talvez fazer um filme sobre isso ou qualquer outra coisa. Acho que fazer cinema é coisa de gente engasgada mesmo.
Ainda assim sinto que tanto a história de Felipe quanto a minha, de algum jeito, estão aí nessas palavras (antes elas do que eu). Acho engraçado como repeti “só” escrevendo sendo que não tenho esse costume e olha que vários “sós” fui cortando. Talvez eu faça disso aqui um “texto oficial”, não sobre a minha história, mas minha história com um filme. Essa história só quem pode contar sou eu e estava inspirado a fazer isso.
* Trecho do texto “Isso é uma crítica de cinema”, disponível AQUI
(des)fazer-se por inteiro
Por Adelvando Queiroz (Caruaru | PE)
O filme é narrado em primeira pessoa, o que traz para a obra uma pessoalidade, marcada pelo texto que conta a história de um trauma pessoal do personagem. É interessante perceber que ele (personagem/narrador) começa a narração trazendo um discurso contraditório e metalinguístico, ao se apropriar de uma fala de “um curador” que desqualifica a obra audiovisual documental em primeira pessoa. Ele diz concordar com o tal curador, mas faz o contrário ao utilizar-se desse método em sua história.
Desde o começo, pedaços de uma mesma fotografia são expostos enquanto o personagem narra a história do dia em que ela foi tirada. A utilização do plano detalhe nos aproxima de detalhes dessa foto, que vão revelando estampas, pessoas (partes delas), natureza, enquanto descobrimos qual o trauma do personagem: alguns dos homens presentes na foto abusaram psicológica, sexual, sentimentalmente do personagem. O choque se dá pelo tom calmo com que a história é narrada. A voz off do narrador não altera de tom, mas apresenta um texto seco acompanhado de um som ambiente, mas pouco audível, que acrescenta uma naturalidade fria casada à ausência de planos mais gerais.
Logo, vemos que os rostos dos abusadores foram “queimados” digitalmente, não para nos proteger, mas como uma forma do personagem materializar seus medos. Essa intervenção, sem o texto, seria brutal por si, mas não saberíamos o motivo dela. Poderíamos deduzir como a tentativa de se apagar o rosto daquelas pessoas da memória, mas por que, então, não se rasgar, queimá-la inteira, desfazer-se dela por inteiro?
Enquanto isso, ele se percebe enquanto vítima e aceita essa posição. Ao final, em vez de ampliar a fotografia, é mostrado apenas o rosto do que se deduz ser o narrador/vítima em primeiro plano. Uma autodeclaração de ser subjetivo e incompleto, que nos deixa o mistério de quem são aquelas pessoas, como seria aquela imagem por completo. São recortes de uma lembrança que jamais será apagada e, ao mesmo tempo, que não se quer lembrada por inteiro.