Críticas | Corpo Monumento

Críticas | Corpo Monumento

A ComplexCidade e seus contrastes

Por Lara Leal (Olinda | PE)

Ao assistir o curta Corpo Monumento a primeira sensação que me surge e segue até à última cena  é de contraste e da complexidade do espaço urbano. Com planos que partem do primeiro até o plano geral, aéreo, um corpo parte e avança de dentro de uma parada de ônibus com uma dança que não é comum aos espaços públicos, nesse caso, a avenida Dantas Barreto, no Recife, local que reconheço por viver na região, mas que poderia ser em qualquer cidade grande, capital. Esse corpo se movimenta com um objeto tipo bastão, e se lança com movimentos de luta, girando o bastão. Um corpo único, uma mulher que atrai olhares de estranhamento.

Esse olhar, que já senti como artista experimentando a performance e também enquanto espectadora de outros artistas, mas nunca enquanto trabalhador, transeunte apressado, frequentador de centro que não tem contato com arte contemporânea, nem muito menos conhece a palavra, pois inseridos em outros espaços, tempos, realidades. O contraste desse estranhamento é visível, pois uma mulher que luta e se coloca meio que em guerra com o hostil e o incompreensível se dilui conforme a câmera vai abrindo o plano para cima, até chegar ao céu, algo que se repete ao longo do curta em sua diversidade de corpos, linguagens e sentidos.

O próximo quadro/cena, é de uma mulher trans que observa a cidade com altivez e se relaciona com um edifício em ruínas, o que pode ser uma metáfora dessa relação do seu corpo com o imaginário urbano. Os planos também partem do primeiro para um mais geral, mas a cidade de fundo, pelo alto, com o mar e os edifícios modernos, como as torres gêmeas que tem uma relação também de contraste e política com o Recife Antigo, com suas disputas entre ocupações Estelita e do grande capital fazem um panorama do complexo-cidade. Esse espaço de confrontos parece distante do que está vivendo a mulher.

Conforme a personagem caminha pelo lugar em ruínas, elementos como uma escada em caracol de ferro enferrujada, sugerem o antigo, o abandono: paredes caindo, pedaços de concreto pelo chão. Seu corpo vai atravessando portas e cômodos, o contraste do novo e velho vai se perdendo, e apenas esse clima antigo se sustenta. Ela se maquia e se prepara até chegar a um teatro silencioso, abandonado e escuro, com diversas fotos de atrizes ou cantoras do passado, um caminhar para o interno e o interior. Ao fundo, uma trilha sonora que a personagem dubla, na voz de Elizeth Cardoso, voz que reconheço e que parece transportar a um tempo muito anterior, mas ainda vivo. A mulher trans que no mundo contemporâneo confronta espaços, nesse caso na arte, se inspira em mulheres que atravessaram esse mundo e espaço antes.

Não me foge aos olhos as múltiplas expressões, que estão em pano de fundo em quase todas as cenas, como as pichações e grafites tanto no interior quanto no exterior dos prédios que surgem e somem ao longo do filme, um contraste novamente, a arte urbana e atual ressignificando o abandono dos edifícios. Até mesmo em uma aparente sala de ensaios que segue na única cena em que vemos mais de uma personagem principal, essa escrita do grito silencioso aparece. Nessa sala está uma trama elástica, várias mulheres vestidas em tons escuros fazem uma dança, uma ação política e vão se jogando, caindo e levantando, prendendo-se a essas amarras flexíveis pelo espaço pequeno.

Um discurso falado ao megafone tem tonalidade de protestos de rua, o texto é teatral e a trilha sonora é instrumental e abafada ao fundo, como vozes da multidão. O megafone em uma sala tão pequena dá a dimensão de um grito no vácuo. A luta coletiva feminina encontra mais um um contraste nesse espaço, o pequeno fechado versus o amplo das ruas onde esse grito encontraria o ideal, o comum, a comunidade. A cena termina com a simulação de uma garrafa sendo jogada, remetendo ao coquetel molotov que fecha em outra cena bem próxima ao peito de uma das personagens, outro corpo com o coquetel, agora, desenhado. Um misto de desejo e repressão. 

Há um corte e as imagens são ao ar livre, à noite. O som de água complementa as imagens fechadas do rio. Chega a um plano baixo, como se navegando até próximo a pés que caminham sobre um chão em chamas, que se revela em uma mulher: mais um corpo solo agora ao mesmo tempo dentro da água até o pescoço e com os dedos presos a arames também em chamas. O fogo na água, outra vez: contraste. Apesar dos efeitos sonoros de gotas, o fogo malabarismo do corpo feminino com bambolê se contrasta nos sentidos, o que se ouve não é bem o que se vê. A cidade como fundo de novo, na escuridão,  e o contraste de luzes e fogo. Sobe o plano novamente, imagem aérea e geral do corpo sobre um píer, mas fora do rio, dança na imensidão. O jogo nesse momento é de dentro e fora, arde e refresca.

Pelo rio novamente, o plano volta a se fechar, o amanhecer toca em reflexo, o movimento da câmera vai subindo junto a claridade e mostra barcos enquanto uma voz masculina passa a declamar um texto que reconhece a cidade como Recife. João Cabral me vem à memória falando sobre o capibaribe e suas margens e a cidade que o entorna, os contrastes sociais do seu entorno. A figura que surge dentro do barco é também masculina, a voz que fala parece de um estrangeiro com sotaque carregado, uma visão externa no interno. Essa figura é também uma máscara, um boneco, com o desenho de um rosto que visivelmente está sendo manipulado por outra pessoa.

O barco e a personagem se aproximam de casas de palafita onde crianças estão brincando na beira do rio, o texto falado termina explorando a complexidade dessa cidade e uma criança se aproxima e guia o meio homem, meio boneco até adentrar em uma comunidade rodeado de crianças que parecem se divertir em participar dessa encenação que não é cotidiana para elas, mas participam com menos estranhamento. Outros contrastes, o idoso e o infantil, a estrangeiro encantado com a vida local simples empobrecida. Anoitece, enquanto o homem finaliza a fala, uma música tipo indiana faz a trilha sonora em mais um plano geral aéreo da comunidade e finaliza a fala do homem com a frase “meu amor está acima do nível do mar” uma referência à geografia da cidade que está abaixo do nível do mar. O de cima sobe e o de baixo desce, como disse a minha memória na voz de mais um poeta da complexCidade, Chico Science.

A narrativa que liga as cenas e os temas, as personagens e textos é complexa e dos contrastes da cidade, mas muito bem amarrada, cria no espectador muitas imagens e desperta interpretações subjetivas e objetivas. No final, duas personagens masculinas têm em seu corpo a projeção de imagens de lixo enquanto comem frutas, imagem luxuriosa também. Começam comendo devagar ao som de uma música clássica, erudita, que traz o contraste do que seria elegante e do que seria sujo e largado, do luxo-lixo.

Eles vão aumentando a intensidade, devorando com mais vontade e se lambuzando com o banquete de frutas, o que me lembra a letra de Panis et circensis, cujas pessoas na sala de jantar não estão ocupadas senão em nascer e morrer e ao mesmo tempo uma performance da artista Lygia Clarck em que convidados comem, com olhos vendados, frutas espalhadas sobre um corpo deitado, não sabem o que comem mas seguem comendo cegamente o que tem às mãos. As sensações se entrelaçam, mas o que fica mais forte é a da fartura versus a fome, um abismo social. A cidade projetada mostra um edifício antigo, mas bonito, útil e conservado: Não reconheço se é a câmara legislativa ou o teatro Santa Isabel, palcos da lei e ordem e da dita alta cultura, ou seja, de uma arte que não inclui a todos. As consideradas alta e a baixa cultura em contraste nesse momento. Os corpos, os gêneros, os rituais, os espaços internos e externos, os altos e baixos da cidade são as partes que conectam as performances que surgem ao longo desse filme. O contraste é o que traz a complexidade que aparentemente não seria compreensível a todo tipo de público, mas ao se deixar observar os códigos, a poética e a liga que os torna parte de um mesmo lugar, fica a impressão sensorial do cruzamento dessas linguagens através da exploração de planos, fotografias, cenários e corpos que cruzamos cotidianamente.  A linguagem cinematográfica tem esse poder de diluir as fronteiras das linguagens fazem o híbrido que a arte de uma maneira geral é, de sujeitos, objetos, ambientes, sons, imagens e imaginação e toda uma infinitude de sentidos que não conseguiria trazer em palavras, ou em um único texto. Posso, então, apenas com minha subjetividade e trajetória, transmitir o que passou pela minha percepção e o que pode se encaixar ou contrastar com outras percepções e complexCidades do subjetivo.

Corpos-memória

Por Izabela Cavalcanti (Recife | PE)

À primeira vista, o primeiro nome do curta me traz à memória lembranças de um 2019 ativo, em que mexer o corpo em cenários urbanos poderia fazer parte do dia a dia. Num outro momento, olho para o segundo nome do curta e não me furto de procurar seu significado. Desse modo, de acordo com o Oráculo dos nossos tempos, monumento significa “obra, geralmente grandiosa, construída com a finalidade de perpetuar a memória de pessoa ou acontecimento relevante na história de uma comunidade, nação”.

Em Corpo Monumento, seis performances são dispostas numa narrativa pouco orientadora – a princípio, as ações não parecem levar a lugar algum -mas logo são costuradas por cenas que evidenciam a conexão entre o Recife e os corpos dos seus residentes.

Na primeira cena, o movimento de câmera reflete a expressão do transeunte mais caricato que olha a performer: parte de um plano médio a um plano geral, a fim de entender melhor o que está acontecendo naquela manhã de dia útil. Junto a um rock’n roll frenético, transportei-me ao suposto pensamento daquele homem, “o que essa mulher está fazendo aqui?”. De fato, saindo de uma das paradas de ônibus instaladas num dos corredores mais volumosos da cidade do Recife, a artista rasga o dia a dia comum e apressado com seus movimentos calculados e concentrados, e a trilha sonora confronta o habitual som das buzinas, dos vendedores ambulantes e dos transeuntes instalados naquela região central da Metrópole pernambucana. – Provavelmente, as pessoas irão lembrar desse dia.

Logo depois, a câmera em primeiro plano, que já perpassa para a segunda cena, mostra o olhar irônico de uma mulher com ares de artista em um prédio em ruínas. As cenas que se intercalam entre o seu rosto e um acúmulo de pó, o andar da personagem e uma escada em ruínas, uma plateia vazia e suja e seu show no palco, não dubitam em passar um contraste que revela, por parte da personagem, uma intensa necessidade de trabalhar, apesar de seu ofício ter tido o mesmo destino de filha desgarrada do espaço em que se encontra. – A quem pertence o poder de aparecer?

Rumo-me a uma outra mulher entrando num edifício, novamente com tons de abandono, no centro da cidade, com o objetivo de fazer uma performance que se evidencia pelo seu megafone e uma trama de elásticos, em que mulheres se esforçam para sair. Um novo contraste surge: megafone em um apartamento? As ondas sonoras que saem do aparelho, as quais anunciam um tom de incômodo e denúncia ao sistema político vigente, batem nas paredes do aposento e voltam para todas as personagens. Desse modo, tal como o próprio lugar em que desempenham o ato artístico, seus gritos não são notados. – E quem lembrará do que não é percebido?

Com o que parece ser um coquetel molotov jogado por uma das performers da cena anterior, o filme corta para uma nova atuação: um anel de chamas é malabarizado nas mãos de uma artista, numa das regiões mais cobiçadas pelas construtoras atuantes na cidade. Assim, o território do cais José Estelita, lugar de intensa fricção entre manifestantes e empreendedores, e borda de um rio Capibaribe submisso, parece longe de perigos com a calma dos movimentos da atriz e da trilha sonora que brincam com a memória de um rio – ainda é? -cintilado pelas luzes do cais.

Continuando em um curso d’água, um boneco, o que me fez lembrar os bonecos que percorrem a cidade nos dias de fevereiro: os papangus e os bonecos de Olinda, também navega por uma artéria importante da cidade. A cena, que utiliza um plano de câmera que oscila entre o inteiro e geral, investe em uma voz de personagem grave que remete a serenidade, diante da contemplação de um curso d’água, agora, inutilizável. O personagem é, pela sua idade, a resistência cansada e o amor residual.  Todo amor requer memória.

Lançam-me, logo após, a uma cena que parece divergir de todas as anteriores, mas que não deixa de lado seu tom denunciatório. Dois homens, no que parece ser uma apresentação teatral, à frente de uma imagem, na qual, ao fundo, apresenta-se o teatro Santa Isabel, importante monumento aristocrático da cidade, lambuzando-se em um banquete digerido em lixo – o lixão da metrópole. O qual, ironicamente, não fica na capital. – Quem irá se incomodar com o que não sente? Por isso, o filme retrata uma cidade que, entre suas evidências e obscurescências, expõe o poder da metrópole em escolher os corpos-memória emissores da sua história. Fica evidente, então, que avançando e “cuidando” das pessoas, o Recife cultiva uma memória e abriga diferenças, mas elas têm seu devido lugar.

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